Recidivas florestais ou Sobre febres e queimadas (*)
Conta-se que num grande e renomado hospital da capital federal, especializado no tratamento de doenças fatais, como câncer, aids e desgraças assim tão pessoais, encontra-se internado um paciente famoso, tipo celebridade da tv, do cinema, da política ou coisa que o valha. Êle é um desses que merece a regalia particular e a satisfação pública da emissão de boletins diários, senão horários, sobre a evolução do seu estado de saúde; o que, inclusive, proporciona aos médicos o direito e o dever de dar entrevistas coletivas à imprensa no auditório principal.
Todo mundo – não só no meio médico, como no intelectual, no político, no artístico, no empresarial, na imprensa em todos os seus meios, e até a população em geral –, conhece perfeitamente a origem e a causa da doença, como tratá-la e como eliminá-la, pois o diagnóstico e a terapêutica já estão há anos, ou décadas, plenamente consolidados e são, hoje, de amplo domínio público.
É notório que o estado geral do sujeito é crítico ou muito crítico, tendendo a grave ou muito grave, mas a equipe médica insiste em considerá-lo sob controle, estável, com pequenas variações para mais ou para menos, mais saúde ou menos saúde. Situação que, para eles, significa ainda uma certa margem de segurança (ou de erro!) aceitável; ou seja, tentam apresentar, para nós, pobres leigos, uma espécie de empate técnico entre a vida e a morte.
Incrível é que toda vez que os tais senhores doutores se reúnem para coletivas com a imprensa, principalmente a televisiva, naquele tal auditório, desandam a falar única, exclusiva e repetidamente sobre um único tópico: as variações relativamente positivas ou negativas do quadro febril do paciente. Apenas as mesmas e insanas estatísticas, representadas por insípidos e estéreis índices percentuais, a respeito do nível de febre do momento ou de certo período em relação a outro momento ou período, correspondente ou não, do passado.
É absurdamente inacreditável e incompreensível – seria até hilário, não fosse tão grave o caso – vê-los repetir metódica, periódica e febrilmente essa monótona ladainha cheia de correlações e percentuais: o nível médio de febre no mês passado foi tantos % superior ao nível médio registrado nesse mesmo mês no ano passado, ou, o grau máximo de febre verificado no último trimestre foi tantos % inferior ao alcançado em igual período do ano retrasado.
Isso me lembra muito um daqueles anúncios malucos que o Grande Irmão, o famoso Big Brother (o original em 1984, de George Orwell e não o do Reality Show), mandava alardear nas teletelas: “Camaradas! Atenção, camaradas! Temos gloriosas notícias! O Ministério da Fartura anuncia que ganhamos a batalha da produção! Os totais completos da produção de todos os artigos de consumo demonstram que o padrão de vida aumentou em nada menos que 20% sobre o ano passado”.
A doença se instalou há décadas, já se manifesta há anos, o paciente está em coma há meses e os médicos comemoram entusiasticamente a redução da febre de hoje de manhã em 1,34% em relação à de ontem à noite, sendo que os altos níveis de superaquecimento verificados apenas no últimos dias, em relação a outros tantos dias – sem falar de semanas, meses, anos –, anulam completamente os efeitos dessa mísera e ridícula redução! E pior: eles não nos dão a menor garantia de que este nível irá se manter ou abaixar hoje à tarde! Pode até aumentar de novo!
Quer dizer então que caso isso fosse, por exemplo, uma doença degenerativa progressiva, que começasse atacando os membros locomotores, e que o doente já tivesse perdido uma perna inteira nos primeiros vinte anos, que viesse perdendo dedos à taxa de um dedo por ano nos cinco seguintes, mas, que no ano passado tivesse perdido apenas um terço de um mindinho, estaria, então, tudo bem?! Como assim?! E se neste ano êle voltar a perder outro dedo inteiro?! E se no ano que vem êle perder ainda mais que dedos?! E tudo que já se perdeu, não conta mais?! É aceitável que não se conte mais com o já perdido, mas, mesmo que a taxa de perda anual se mantenha nos seus patamares mínimos, um dia não se terá perdido tudo?! E aí, como é que fica?! Ou pior, como é que não fica?!
Voltando à febre, não menos trágico e devastador é constatar que a junta médica não sabe nem mesmo explicar a possível causa benéfica, o real motivo subjacente, de tal repentina e simples redução. Citam e enumeram uma infinidade das já conhecidas ações profiláticas e saneadoras para o caso, mas, na verdade, o seu discurso denuncia o total desconhecimento da causa real. Pode muito bem ser que vírus, bactérias, células daninhas, ou seja lá que agente causador for, por razões meramente casuais, circunstanciais e sazonais, tenham resolvido dar uma trégua, um breve intervalo de pausa, visto que isso é uma necessidade fundamental e intrínseca de qualquer ser vivo: intercalar períodos de atividade com períodos de repouso. Afinal de contas, ninguém é de ferro e até mesmo os germes merecem descanso.
Enquanto isso, o nosso famoso doente, apesar de acamado e em coma, segue caminhando imperturbável, inexorável e terminalmente em direção aos braços daquela ainda mais famosa senhora com cara de caveira, túnica preta e longa foice na mão, que um dia irá, final e literalmente, ceifar-lhe a vida.
Pois é, a vida da nossa internacionalmente querida e célebre Floresta Amazônica Brasileira – ou simplesmente Amazônia, para os íntimos ou não – vai se desenrolando, ou pior: vai se desmantelando, se desmanchando, se desfolhando, se desmatando, exatamente dessa forma. E enquanto as abomináveis e imperdoáveis queimadas crescem, ou até diminuem, ao sabor dos ventos e ao gosto dos vermes incendiários, as árvores e as matas continuam febris; em maior ou menor grau, mas ainda perigosamente febris.
(*) Crônica enviada para a Revista Época, em Dez/08, mas não publicada.
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