Paradoxo Mortal
Apenas mais uma tragédia carioca (*)
Dr. Edward, 62 anos, mais conhecido como Ted, era um bem sucedido médico-veterinário escocês, de Motherwell, gorducho de pele vermelha, corpulento, tanto em altura (1,83m) quanto em mobilidade (107Kg), que trabalhara para o governo britânico, por cerca de 40 anos, monitorando a saúde e o bem-estar dos rebanhos de Sua Majestade no Condado de Hertford, Inglaterra. Como fora recente e compulsoriamente aposentado, degolado pelas políticas desestatizantes de Thatcher-Blair, estava divorciando de Jane há quase 5 anos, dispunha agora de boa poupança engordada pelas indenizações trabalhistas, e sentia-se, portanto, livre como um pássaro ou, no seu caso particular, solto como um boi na invernada, Ted resolveu, então, se dar um belo e revigorante presente de vida nova: uma longa temporada de “férias” no Rio de Janeiro, Brasil, cidade onde ele já estivera há quase 30 anos atrás, em viagem de lua-de-mel com Jane, e de cuja terra êle guardava, obviamente, ternas, carinhosas e românticas recordações.
Ted não pretendia fazer grandes coisas no Rio, nada de visitar lugares comuns como Pão-de-Açúcar, Corcovado e Maracanã, nada disso; o que ele queria mesmo era apenas, como da outra vez, hospedar-se em Copacabana, na Av. Atlântica, atravessar o calçadão, botar os pés na areia quente, sentir o calor do sol na pele e refrescar-se um pouco no mar, só isso. Mais que isso só, certamente, umas cervejinhas geladas nos quiosques da praia e, talvez, eventual e circunstancialmente, desde que com desejo ou necessidade sexual deveras premente e proeminente, se render aos apelos e aos encantos de uma daquelas garotinhas de plantão no calçadão – logicamente com a prevenção adicional de verificar e comprovar a maioridade da moça, como reza o aviso-advertência afixado no saguão do hotel.
Êle também não queria ir pro Rio em meses de alta-temporada, tipo dezembro e janeiro, nem queria participar de nenhum carnaval em fevereiro ou março, por isso escolheu abril / maio, tendo o cuidado de evitar junho, porque ele sabia que essa estória de Rio-40-graus ou de verão-o-ano-inteiro era pura balela, coisa-pra-inglês-ver (ou não ver!), conversa-pra-boi-dormir, e que, na verdade, no Rio ocorriam invernos, sim, e dos brabos! – nem que fosse por uns poucos três ou cinco dias em julho.
((E isso me lembrou um certo sujeito, um norueguês, de Morsvik (a quase 68o de latitude norte!), muito bem humorado e otimista, que eu conheci anos atrás numa reunião de trabalho, num hotel dessa mesma Copacabana, nesse mesmo Rio de Janeiro (22o de latitude sul), num tórrido dia de dezembro às 2 da tarde, o qual, quando indagado se na Noruega existia verão, respondeu, com seu inglês sofrível, mas pronta e seguramente: “Verão, lá? Claro que tem! No ano passado até caiu num domingo!”))
Valdemiro, 13 anos, mais conhecido como Miro, no morro, ou pelo codinome VDM, na Boca, é um garoto magricelo, moreno, baixinho e raquítico, porém muito esperto e ligeiro, com o 2o. ano do ensino primário incompleto por abandono, e que trabalha, desde os 10, para o tráfico do Morro do Cantagalo, Rio de Janeiro, Brasil, onde nasceu e cresceu. Ele atua como uma espécie de menino-de-recado e segundo-sentinela-armado – invariavelmente com um AR-15, modelo do ano (2006), de procedência desconhecida, para uso pessoal e absolutamente restrito a seu posto de observação, localizado estrategicamente na laje mais alta da entrada norte do morro, de onde ele tem total visão, controle e domínio sobre o acesso pela Rua Percy Murray.
Miro está muito satisfeito com o seu trabalho, pois além de ganhar uma boa grana dos malandros marmanjos, toda semana, como salário individual, a sua família (mãe e três irmãos menores) encontra-se muito bem assistida e protegida, social, financeira, política e economicamente, pela Organização. Miro não quer, nem espera, mais nada da vida! Porém, como recentemente ele andou estourando o seu orçamento doméstico, devido à compra de dois pares de tênis rider pra ele, um cd-player pro irmão e uma geladeira frost-free pra mãe, estava perigosamente em déficit financeiro junto a seus chefes imediatos, que mui pronta e despretensiosamente sempre lhe adiantavam a bufunfa em ocasiões como essa.
Portanto, era chegada a hora de novamente descer o morro e ganhar o asfalto, para a velha prática do assalto, para o bem conhecido roubo, para o bom arrocho, pra rapinagem, pro afano, pra sacanagem, ou pra seja lá o que deus e o diabo quiserem; pois era urgente e imediatamente necessário faturar grana extra para saldar a dívida com a Organização e, quem sabe, melhor ainda, ainda sobrar alguma. Caso contrário, VDM jamais subiria de novo o morro, nem morto!
Tempo fechado, cinzento, nublado, chuvoso, quase morto. Já fazia três dias que Ted chegara ao Rio e, enfim, na manhã do quarto, pela janela que dava pro mar da Princesinha, abriu um magnífico dia de sol de abril. Ted regalou-se prazerosamente com seu suculento, farto e nutritivo brazilian breakfast, vestiu um bom short de banho e desceu para a avenida. Atravessou para o calçadão da praia e seguiu rumo sul, em direção ao Forte. Como o mar ainda apresentava resquícios da ressaca dos dias anteriores, ele decidiu entrar na água somente na altura do Posto 6, achando que ali, devido aos rochedos do Forte que fecham a praia daquele lado, o mar estaria mais calmo. Ledo, e quase fatal, engano! Pura falta de mínimos conhecimentos marítimos, ademais, difíceis de se esperar de um veterinário! Naquele trecho é que as ondas ficam ainda mais bravas (não é à toa que a garotada do surf vive jogando a prancha por lá).
A poucas centenas de metros dali, Miro comeu seu pão-com-manteiga com café requentado e, com o mesmo velho e surrado calção de banho, e de tudo, (era o único que tinha – mês que vem compraria uns novos), desceu pra rua, junto com dois ou três outros garotos, amigos seus, de idades e profissões também mais ou menos iguais à sua. Pegaram a Rua Miguel Lemos, atravessaram a Barata Ribeiro e a N. Sra. de Copacabana, e ganharam a Av. Atlântica, na altura do mesmo Posto 6. Com aquele sol maravilhoso, não resistiram e caíram na água ali mesmo; foram simplesmente aproveitar a praia e o mar, se esbaldar, brincar e se divertir, como toda e qualquer criança faria. O trabalho do dia podia ficar para mais tarde, mesmo porque era sempre à noite que ele rendia mais e melhor.
Enquanto isso, a poucos metros dos meninos, mister Ted encontrava-se seriamente em apuros: com a água já batendo na altura do peito, o escocês mal conseguia manter seu corpanzil flácido e lerdo ainda ereto; debatendo-se contra as fortes ondas, ou sendo içado e abatido por elas, ele cada vez menos sentia seus pés tocarem a areia no fundo. E então, num momento de extremo pânico e desespero, vendo os garotos brincando um pouquinho mais perto dele, agitando os braços freneticamente ele conseguiu gritar um abafado e balbuciante “help!”. Demorou uns poucos segundos (eternos para Ted), mas um dos garotos, o Miro, logo viu o velho e, estendendo a mão displicentemente, agarrou o seu braço puxando-o para o lado mais raso; o suficiente para que Ted conseguisse se equilibrar e caminhar lentamente para a praia com seus próprios pés.
Já em areia firme, cansado, atordoado e ofegante, Ted mal conseguiu virar-se para os garotos e pronunciar um tímido e quase inaudível “Thank you”, ao passo que os meninos, inocentemente alheios à quase-grave situação e em total algazarra, só zorravam, zombando e caçoando dele, gritando coisas como: “E aí tio, quase dançou, hein?”, “Se manca, ô coroa!”, “Sai fora, velho!”, “Vai se foder”, “Vai perder”...
Ted tomou o rumo do hotel e se mandou. Miro e seus amiguinhos, horas mais tarde, tomaram o rumo do morro e também se mandaram, pois tinham que, pelo menos, vestir roupas secas pra poder voltar pro trabalho da noite.
Tarde da noite, Ted, após um relaxante banho de sais na jacuzzi do seu flat, desceu pro calçadão em frente ao hotel e deliberou ficar por ali mesmo, nos bares das redondezas, pois só queria tomar um bom whisky e umas cervejinhas pra poder esquecer as agonias daquela manhã. Pouco antes, Miro passou pela cozinha da mãe, apanhou a faca mais afiada e pontiaguda que encontrou, daquelas de degolar galinha, embrulhou com um pano bem grosso, enfiou na cintura e desceu o morro com a mesma turminha de sempre. Logo, logo, descendo pela mesma Miguel Lemos, chegaram à Atlântica e seguiram rumo norte, na direção do Leme, calçadão afora em busca da região dos hotéis mais luxuosos da orla.
Não precisaram andar muito, pois breve avistaram um vistoso senhor, de bermudão e camisa curta florida-colorida, um velho gordo e grandalhão, vermelhão de tanto sol e álcool, com um convidativo rolex no pulso, uma apetitosa carteira estufando o bolso traseiro e uma saborosa e irresistível Sony digital, com lentes especiais para fotos noturnas, dependurada no pescoço – ah, era o típico turista-babaca, o estereótipo perfeito da idiotice turística carioca, pedindo pelo-amor-de-deus pra ser assaltado! – o homem certo, na hora errada, no lugar errado – e, pior (ou melhor!) ainda, vinha caminhando cambaleando sozinho pelo calçadão em direção a eles. Assim como Ted não reconheceu os meninos, pois para ele eram todos iguais a milhares de outros, principalmente à noite, os meninos também não reconheceram Ted, para eles também igual a milhares de outros turistas - à noite, todos os gatos são pardos e todos os elefantes são cinzas.
Foi mole, Miro não teve trabalho algum. Acercou-se com a sua turma em volta do velho escocês e fez aquele fatídico anúncio formal de praxe: “Aí, perdeu, tio!”. Ted rápida e lucidamente percebeu que estava sendo assaltado, mas louca e alucinadamente reagiu acreditando que com seu corpão poderia dar conta daqueles três ou quatro pirralhos, e se safar da situação, simplesmente espantando-os. Lêdo, e agora fatal, engano! Tal e qual um velho leão acuado e abatido por uma matilha de hienas famintas, ele foi instantaneamente derrubado de costas para o chão.
Miro pulou sobre ele, puxou a faca e desferiu-lhe apenas três golpes rápidos, certeiros, profundos e fatais, em seqüência: pulmão direito, coração, pulmão esquerdo. Enquanto os quatro pivetes corriam para lados distintos, cada um carregando um dos três produtos do assalto, e Miro a faca, Ted jazia ali, estatelado no chão como um boi abatido, com seu peitoril derramando três fluxos abundantes e contínuos de sangue, cuja poça ia formando um novo, enigmático e indecifrável desenho rubro, regido pelos sulcos e pelos contornos das pedrinhas pretas e brancas do mosaico-português do calçadão de Copacabana.
No dia seguinte, os jornais, nacionais e estrangeiros, noticiaram o assalto, seguido de morte, de mais um turista europeu nas ruas do Rio de Janeiro. O que ninguém noticiou, tampouco sabia ou soube, era que o menino que o assassinara era o mesmo que o salvara de afogamento, cerca de apenas 12 horas antes, naquele mesmo dia, naquela mesma praia – talvez assim, mesmo que inconscientemente, como um predador que caça e guarda a presa de manhã para devorá-la somente à noite.
Robert Silvercore
(*) Conto-crônica enviado para o Concurso Literário da Editora Globo, em 2006.
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