Desconexões espaço-temporais
(Space-time disconnections)
Eles estavam lânguida e preguiçosamente estirados sobre sua larga e aconchegante cama de casal, depois de uma plenamente satisfatória, intensa e gloriosa noite de amor e sexo, como há muito não tinham o prazer de gozar. Ultimamente as crianças e os seus respectivos trabalhos estavam dando muito trabalho. Era plena sexta-feira, dia em que ambos costumavam tirar folga do serviço ou, pelo menos, se permitiam chegar mais tarde e, portanto, podiam ainda continuar ali, na cama, sossegada e confortavelmente instalados debaixo dos lençóis e dos edredons – era manhã de fins de junho e fazia muito frio.
Displicente e calmamente êle observava – mais que isso: contemplava quase mística e religiosamente – aquele radiante dia de pleno sol, com poucas nuvens, através dos grandes painéis das janelas de blindex que se erguiam na parede sul da suíte. Janelão este constituído por oito grandes painéis retangulares dispostos lado a lado em duas fileiras de quatro, com suas junções e batentes de madeira formando grandes e finas cruzes. Panorama matinal perfeito: bandos de pardais e de andorinhas voando velozmente, em círculos e ziguezagues, debaixo de poucas, alvas, delgadas e longuilíneas nuvens que corriam lentamente ao vento contra um fundo de céu de inverno inacreditavelmente azul.
Os ciclos quase rítmicos e regulares dos círculos e dos ziguezagues dos vôos das pequenas aves iam incessantemente se repetindo: hora vindo dos painéis inferiores para os superiores ou vice-versa, hora indo dos painéis da esquerda para os da direita, dos de baixo para os de cima, ou ao contrário, cruzando pelas diagonais... um verdadeiro balé de acrobacias aéreas. De repente o segundo painel superior à esquerda chamou sua atenção: havia algo muito estranho ali, alguma coisa não se encaixava, algo fora de ordem, fora de compasso, fora de... Ele, então, meio atordoado, muito confuso, atônito, quase em pânico, tremulamente a cutucou de lado e gagueiramente (apesar de não ser, nem jamais ter sido, gago) a chamou:
– Am... amor... , ac...acor... acorda, o... o... olha isso...
Ao que ela, ainda bem sonolenta, quase irritada e com a voz pastosa, virando-se pro outro lado, respondeu:
– Que é, mooor... zzz... me deixa dormir mais um pooouco... zzzz ...
Ele, insistente e nervosamente repetiu:
– ‘corda, mor!!!,,,, olha pra janela!!!
Desta feita, já desfeita e não muito satisfeita, ela acordou de vez e os dois ficaram ali, sentados lado a lado na cama, despertos e boquiabertos, quase hipnoticamente olhando para aquela estranheza: as delgadas linhas e formas das nuvens que lentamente cruzavam o céu de leste para oeste compunham belas e suaves figuras que se conectavam e se completavam perfeitamente enquanto iam atravessando, de um painel para outro, o grande janelão – inclusive aquelas que passavam através do segundo painel superior à esquerda. O céu azul e as nuvens brancas formavam, assim, um perfeito pano de fundo, assim como eram também perfeitos os vôos das andorinhas e dos pardais em primeiro plano, exatamente conectados e continuados através dos oito painéis do janelão. Através de todos os painéis? Não! Em sete, tudo bem... mas não num deles, naquele tal segundo superior à esquerda: ali as trajetórias dos passarinhos não se conectavam, não se alinhavam, com as dos painéis laterais, ou simplesmente desapareciam e reapareciam no painel seguinte. Por exemplo: uma andorinha em vôo horizontal perfeitamente retilíneo, vindo do primeiro painel à esquerda, desaparecia neste e prosseguia no terceiro! A suave e sutil impressão ótica de um escuro segmento de linha reta, provocado pela rápida passagem da andorinha, fora totalmente apagado, ou simplesmente não era percebido, no segundo painel!
Com muito custo, os dois se levantaram da cama e, vagarosamente caminhando pelo quarto, olharam para aquilo sob diversos ângulos e pontos de vista. A estranheza continuava lá, no mesmo painel. Não se lembraram ou não tiveram tempo (ou coragem!) de abrir as janelas para ver melhor, mesmo porque já estavam bastante atrasados para o trabalho. Tomaram banho, se vestiram, tomaram café, se despediram. Cada um pro seu lado, foram trabalhar e, inexplicavelmente, ao longo do dia, esqueceram totalmente daquilo.
E, como, lá fora, nas ruas, as pessoas continuavam andando, os carros continuavam correndo, as fábricas, os escritórios e as oficinas continuavam funcionando e o planeta continuava girando em torno de um sol que continuava brilhando... parecia tudo perfeitamente bem.
Mas, apenas por uma manhã, por uma manhã apenas, a gigantesca, onipotente, onívora e unívoca máquina que rege, regula e comanda todos os seres animais, vegetais e minerais, e todos os movimentos, ações, situações, posições, estados e eventos do universo – o onipresente, onisciente, onírico e infalível “computador” de Deus – havia falhado.
Naquele mísero, insignificante e regular pedaço retangular de janela que se abre para o mundo e para a vida, todo o universo entrou em colapso, implodiu, foi detonado, desencantado, desmistificado e desmascarado.
Depois dessa manhã, então, o mundo deles ficou irremediavelmente um pouco mais insípido, inodoro, incolor, invisível, inaudível, intragável, intocável e insensível.
Robert Silvercore
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