terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Anhanhonhacanhuva

Anhanhonhacanhuva

Uma breve interseção espaço-temporal

Ainda que uma bela, densa e saudável vegetação, constituída por matas nativas com árvores de pequeno e médio porte, brava e teimosamente ainda persistisse em sua heróica resistência para continuar se realçando, se sobrepondo, e sobrevivendo, como paisagem predominante nas encostas norte daqueles suaves e delgados morros ao sul da lagoa, algumas extensas e desoladas clareiras, aqui e ali – certamente abertas para formação de pastagens para gado bovino –, já se achavam ameaçadoramente estabelecidas, há décadas, naquelas paragens. Mas isso, até ontem. Hoje, não mais. Agora não há mais nada, não há clareira alguma! Toda aquela cadeia de pequenas montanhas, com cerca de dez quilômetros de extensão, abrangendo de leste a oeste todo o horizonte ao sul da lagoa, das margens aos cumes, encontra-se, agora, totalmente coberta por uma única, compacta e magnífica massa verde. Mais que isso: as árvores estão muito mais altas, mais troncudas, mais robustas, mais fortes e mais... verdes! Muito mais verdes! De um verde intenso, mais escuro, mais encorpado. Por Pã, Silvano e Fauno! Por todos os gnomos, duendes e ninfas florestais! Tudo ali, agora, é uma imensa, contínua e estonteante floresta tropical, sem uma mísera clareirinha sequer.
Continuo minha já costumeira caminhada matinal – que, na verdade, se dá por volta das dez ou doze até às doze ou catorze, respectivamente; dia sim, dia não –, pelas trilhas das beiras da lagoa e redondezas, com passos não mais tão firmes, impávidos, pretensiosos e presunçosos, como até então, mas, de-agora-em-diante, um tanto-o-quanto mais hesitantes, claudicantes e cambaleantes, em função e decorrência do que tentarei explicar mais adiante.
Será possível que hoje, em plena sexta-feira “útil” (como se sábados, domingos e feriados fossem “inúteis”!), dia de intenso tráfego aéreo nessas bandas do céu, está acontecendo mais um “apagão aéreo” pelo país afora? O fato é que já são quase duas da tarde e ainda não vi um aviãozinho sequer passar por aqui! – com o tempo, tornei-me um profundo conhecedor da movimentação aeronáutica por esses céus: as principais rotas norte-sul do país, e do continente, passam obrigatoriamente por aqui, porque, além do aeroporto internacional que fica por detrás daqueles já citados morros ao sul da lagoa, tem um VOR (Vertical Orientation Radar) da Aeronáutica instalado perto daqui (cerca de 20 km a sudoeste, em linha reta). Ou será que os aeroportos, os VORs e os aviões, assim como as clareiras, também desapareceram?!
Tirando o olhar do céu e das montanhas e trazendo-o um pouco mais para perto, para a terra e para as águas, continuo a perceber uma seqüência absurda, infindável e inacreditável de coisas estranhas, perturbadoras e anacrônicas:
Tanto os bois e as vacas, que rotineiramente pastavam nas margens do lado de lá, quanto os cavalos e as éguas, que freqüentemente passavam nas margens do lado de cá, haviam desaparecido completamente do pedaço. De repente, num rápido relance, num vislumbre, achei ter visto quatro ou cincos veados passando correndo, saltitando, cruzando a picada bem à minha frente. Eu disse veados?! Foi isso mesmo o que eu vi, eram veados! Um pouco mais adiante, um bando de coelhos-do-mato, cerca de meia-dúzia, enormes, gordos, também passou correndo. Além de espantado, comecei a ficar também um pouco preocupado: de repente pode sair uma onça desse mato!
E as plantas e as flores! Incríveis, maravilhosas! Não entendo nada de flores e plantas (aliás, entendo de quê?!), mas aquelas, com certeza, qualquer bom desconhecedor verificaria logo tratar-se de vegetação extraordinária. Definitivamente não estavam ali até ontem. Cresceram da noite pro dia? Nas águas das marginais e ao longo de toda a margem da lagoa, flores e plantas admiráveis, imensas, intensas. Perfumes inebriantes, suavissimos, indescritíveis – não por mera força de expressão: realmente jamais havia sentido nada igual.
Olhando novamente para os céus, talvez até mesmo inconscientemente buscando vestígios, sinais, referencias – um aviãozinho só, que seja! um rastilhinho retilíneo de fumaça branca, que seja! – que me recolocassem de volta na nossa velha e boa “civilização”, o que vi? Ao invés de aviões, grandes pássaros, águias, gaviões. Gaviões já tinha visto, mas águias, com dois metros de envergadura, jamais! E o sem número de patos, paturebas, garças e cisnes (cisnes!) que infestavam as águas!? Céus e águas enlouqueceram! Caos generalizado! Absurdo total!
Voltando novamente para o chão, comecei a reparar direito por onde eu andava, ou aonde eu pisava: a familiar trilha de terra batida, com aqueles dois sulcos contínuos e rigorosamente paralelos, marca registrada da constante passagem dos pneus dos carros, já não existiam mais (ou seria mais apropriado dizer que não existiam ainda?!); o que se via era apenas uma única e tortuosa picada, denunciada pela ramagem amassada e socada, que permitia somente o transito de pessoas e animais. Nada de carros com rodas, ou coisa parecida. Levantei os olhos mais para frente, para o horizonte, em direção aos morros que fecham a lagoa ao oeste. Cadê os telhados? Cadê as casas? Cadê a igrejinha de duas torres? Cadê o vilarejo que estava ali?! Nada. Um absoluto, silencioso e paralisante nada! Assim como nos morros ao sul, naqueles também repousava apenas uma grande mata fechada. Na verdade, era sempre a mesma mata, a mesma floresta, em todos os morros, num ângulo de visão de 360o.
O único referencial geográfico reconhecível era o grande paredão de pedra calcária, a lapa, localizado na extremidade leste da lagoa, o que, aliás, era a única coisa capaz de me dizer, com certeza, que eu ainda estava no mesmo lugar da superfície da Terra onde eu estava quando toda essa loucura começou.
Gostava muito de viver essas experiências, esses deslumbrantes e aconchegantes fenômenos – naturais, físicos, espirituais, meta-fisicos, psíquicos, cósmicos, para-normais, psicodélicos, psicóticos, sei-lá-o-quê! Tudo junto? – de apurada e transcendente percepção sensitiva e extra-sensorial, que costumavam ocorrer dentro e fora de mim: hora andava com pés descalços no chão, de terra ou pedra, sentindo todo o seu calor, cheiro, cores, vibração e energia, a tal ponto que me integrava, e me entregava, ao ambiente e a paisagem, terras de um espaço longínquo, como um só corpo, eu no mundo, o mundo em mim; hora voava com a cabeça nas nuvens, vendo e percebendo, do alto, todo o céu e todo o universo, paisagens distantes no infinito, com toda a sua vida, vibração e energia, compondo um só ser, eu no universo, o universo em mim; hora eram essas duas coisas juntas, de uma só vez.
Porém, isso acontecia somente naqueles bons e velhos tempos, remotos, imemoriais, quando eu ainda era criança ou adolescente. Quando a gente fica adulto, envelhece, embrutece, e o coração e o espírito parece que endurecem e a gente não sente mais essas coisas. Ultimamente, nessas minhas freqüentes caminhadas, andava pensando muito naqueles ótimos tempos e naquelas deliciosas sensações. Em vão, continuava não sentindo mais nada parecido com aquilo. No entanto, de repente, surpresa! Na andança de hoje foi diferente, aconteceu! Aconteceu diferente, mas aconteceu. Foi tudo muito rápido, uma sonolência, um arrepio, um calor intenso, uma luz refrescante, apaziguando coração, corpo, alma e espírito; eu deslizando, levitando, numa gigantesca avalanche de luzes, cores, energias e sensações; céus, terras, matas e águas se integrando a mim, ou eu nisso tudo. De repente tudo parou, tempo e espaço suspensos, a sensação terminou; um leve zumbido nos ouvidos, uma suave groguera na cabeça, uma extasiante paz no coração e na alma, e eu continuei caminhando. Mas, tudo havia mudado: o chão em que eu andava, o ar que eu respirava, o céu, as águas e as matas que eu via, já não eram mais os mesmos de segundos atrás.
Por um momento, por um segundo, por um pequeno e crucial instante, enquanto continuava lentamente caminhado pelas trilhas daquele cenário maluco, desviei a atenção da paisagem e do ambiente que me cercavam e olhei para mim mesmo, para o próprio corpo. Desconcertante! Chocante! Assombroso! Limiar do pânico! Quase terror! – mas, antes de prosseguir, é preciso que eu esclareça: até onde me reconheço (ou reconhecia!) como ser humano, sou baixinho, fracote, meio magricela, branquelo, quase transparente (de peles e cabelos). Mas o que vi, estarrecido, (repito aqui, novamente, os cinco adjetivos de impacto ditos anteriormente), foi uma pele morena, quase vermelha, grossa, destituída de pêlos, mãos e pés enormes, braços e pernas longos e fortes, peito largo, barriga nenhuma, corpo desnudo, saradasso, com somente um pequeno trapo, parecendo feito de couro, amarrado na cintura, cobrindo e protegendo apenas as sensíveis partes medianas do corpo (frente e verso).
Passado o grande susto inicial, atônita e desesperadamente senti uma necessidade urgente de ver o meu rosto, a minha cara, e o susto continuou, ou, pior, se acentuou, se completou. Procurei um pequeno remanso a beira dágua (em tempo: nunca tinha visto antes aquela água tão límpida, transparente e saudável) e me debrucei na margem para ver (que nem Narciso fez, mas sem a menor intenção e pretensão deste). Rosto quadrado, olhos grandes e escuros, nariz largo e achatado, boca idem, cabelos negros, lisos, nos ombros, brilhando ao sol, foi tudo o que eu vi no espelho dágua, levemente ondulante e trêmulo. Mas, por mais estranho e doido que pareça, sabia que era eu, que era eu quem estava ali, um outro eu, eu em outro corpo, um outro corpo de eu, ou qualquer coisa assim. Mas, sabia que era eu!
Foi precisamente quando me erguia da beira dágua, onde estava debruçado vendo o reflexo da minha cara pálida de susto, que comecei a ouvir ao longe um canto! Um ainda quase inaudível e abafado canto! Uma cantoria! Gente cantando! Fui caminhando na direção dos sons. Eles cantavam alguma coisa como “ana..... uva”. Chegando mais perto: “ana... no... na... uva”, ritmado, ao som de batidas de tambores. Aproximando-me mais, pouco depois de uma pequena elevação divisei logo abaixo uma pequena clareira na mata: circular; pouco mais de 50 metros de diâmetro; em terra batida; no contorno, enlaçando a praça central, cerca de doze pequenas tendas, também redondas, feitas de pau e palha (longas folhas de palmáceas); no centro exato da praça, uma espécie de totem de madeira, com cerca de cinco metros de altura por um de diâmetro; no topo, um capitel parecido com uma carranca; em volta do totem, em círculo, um grupo com cerca de 50 pessoas, caminhando, dançando e cantando (alguns com uma espécie de tambor, outros não); parecia um tipo de festival, um festim, ou um ritual religioso.
Já estava há poucos metros daquilo e podia ouvir mais claramente: “ana... nona... ca... uva” / “ana... nonaca... uva”. Agora estava tão próximo que eles já podiam me ver, assim como eu a eles. Não me estranharam nem um pouco, era como se eu estivesse chegando de um lugar qualquer para participar da festa. Mais estranho é que nem eu os estranhei! Afinal, pareciam-se muito comigo e eu com eles, eu era um deles! (pelo menos esse eu que ali estava, de pé, parado, paralizado, embasbacado, com um sorriso mais deslavado, eternizado na boca aberta embobada de baba). Com um pé na entrada do lugar, ouvia agora nitidamente: “ana... no... na... ca... uva” / “a-na-no-na-ca-nu-va”. Era isso o que eles cantavam, acompanhando as batidas dos tambores, em ritmo bem compassado e lento, acentuando e nasalizando fortemente cada vogal do esquisito vocábulo, ou seja lá o que for isso: “á...nhá...nhô...nhá...cá...nhú...vá” / “á...nhá...nhô...nhá...cá...nhú...vá” / “á...nhá...nhô...nhá...cá...nhú...vá” ...
Última estranheza: meus ouvidos, minha mente e minha alma não estranharam nem um pouquinho aquilo que eles estavam cantando e, compreendendo perfeitamente a língua, a sintaxe, o significado, o valor, e tudo o mais, daquela bela e sonora palavra, entrei na roda cantando também: anhanhonhacanhuva / anhanhonhacanhuva / anhanhonhacanhuva / (*) ... (enquanto dançava e cantava, não sei porque, me veio à cabeça aqueles versos interessantes, sugestivos e emblemáticos do Êrro de Português, do Oswald de Andrade: “quando o português chegou / debaixo duma bruta chuva / vestiu o índio / que pena! / fosse uma manhã de sol / o índio teria despido o português”).

(*) Anhanhonhacanhuva, expressão em Tupi, dos índios Goitacás, da América do Sul, Brasil – que significa, em português, “água parada que some no buraco da terra” –, é o antigo nome indígena da localidade, em Minas Gerais, onde hoje reside o autor desse conto. Atualmente essa localidade atende pelos nomes Fidalgo e Quinta do Sumidouro (distritos de Pedro Leopoldo, MG), onde situa-se a Lagoa do Sumidouro (a dita Anhanhonhacanhuva), local sagrado dos citados índios e referencial geográfico central e principal do recém criado Parque Estadual do Sumidouro.


Robert Silvercore

PS: Esse conto foi enviado para o Concurso Literario da Fundacao Cultural de Ituiutaba - MG, de 2009.

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