Alnitak I
Quebrando o silêncio quase absoluto do lugar, somente aquele leve e suave zumbido, como uma verdadeira droga sonífera sonora, vindo de longe, sabe-se lá o quê, sabe-se lá porque, sabe-se lá de onde. Parecia um pequeno motor, uma turbina talvez, algo que girava constantemente: uma maquininha fazendo funcionar alguma coisa. Estava deitando, ou levitando, sobre uma espécie de cama, que podia ser também uma grande poltrona, bastante confortável e aconchegante, e a torpeza do corpo denunciava um agradável estado de repouso. Talvez estivesse dormindo, sonhando, delirando. Uma estranha e benfazeja sensação de inconsciência, mas não de todo, melhor dizer de semiconsciência, pois permanecia um certo sentido de prontidão, de plantão, em alerta geral, tomando conta de tudo e procurando, incessante e inutilmente, até onde a vista alcançava, referenciais familiares naquele absurdo ambiente.
Olhando bem, aquilo até que parecia com uma cabine de avião, mas, com certeza, absolutamente, não era, de jeito nenhum! Um certo desconcertante, desnorteante e arrepiante sentimento, que brotava gelidamente do estomago, alardeava alarmantemente que a coisa era muito mais do que um simples Boeing. Algumas luzinhas aqui e ali, alguns botões lá e cá, era só o que poderia ser tomado, remotamente, como equipamentos de um jato comercial. Mas certas inscrições, parecendo letrinhas ou números – se é que realmente eram isso –, não guardavam qualquer semelhança com nenhum idioma conhecido sobre a face da Terra, em todos os tempos, desde que o homem primitivo se flagrou pichando cavernas. Além disso, êle pôde facilmente verificar, como prova definitiva de que estava num local totalmente inusitado, que aquele salão era demasiadamente circular e avantajado (mais ou menos 50 metros de diâmetro) para ser uma cabine de avião. E pensava assim porque agora tinha plena certeza que aquilo voava, a grande velocidade e à noite, como acusavam as estrelinhas que passavam riscando o céu que se via pelas longas janelas horizontais localizadas nas laterais. Teve tempo ainda de perceber que talvez não viajasse sozinho, pois havia muitas outras proltronas-camas como a dele espalhadas pelo recinto. Só não conseguiu distinguir se estavam ocupadas ou não, porque todas tinham a mesma cobertura, algo como um semicilindro metálico e transparente, cheio de um tipo de gás azul claro, brilhante e espesso, que não permitia a visão do conteúdo. Não teve tempo, ou capacidade, de ver mais nada.
De repente um gigantesco turbilhão de luz e cores, girando numa imensa espiral frenética e alucinante, se precipitando no infinito a uma velocidade vertiginosa – essa foi a única e pobre descrição que êle pôde dedicar ao fenômeno –, tomou conta de tudo. Melhor dizendo, se tornou tudo. Naquele momento êle teve a nítida impressão de que o que vira e sentira até então era uma mera introdução, uma simples preparação, um estágio de transição, para algo muito mais importante que viria logo em seguida. Era como se, antes, êle estivesse esperando na sala de embarque de um aeroporto e, agora, sim, estava realmente dentro do avião e levantando vôo.
Êle gostava muito de caminhar noite adentro pelos largos gramados defronte a sua casa de campo, e aquela noite estava perfeita. 23:30 horas, sem lua no céu nem luzes em terra, firmamento limpíssimo e estrelado, lindíssimo, sem uma nuvenzinha sequer atrapalhando o cenário. Saturno, Órion, Júpiter, Canis Major, Columba, Lepus, Pyxis, Puppis, Vela, Carina, Crux, Musca, Centaurus, Vênus, Circinus, Lupus. Dava pra identificar e contemplar perfeitamente os principais viajantes que cruzavam a Via Láctea, naquele momento, de sudeste para noroeste. Nessas horas deixava-se levar, entregava-se, era tragado, absorvido, absorto, pelo esplendor do cosmos e só conseguia tentar pensar em duas coisas: no infinito espacial e no eterno temporal, seus dois grandes mistérios insondáveis e insolúveis. Como é que pode? Espaço e Tempo sem fim! Infinitos! Eternos! Mas logo êle desistia de tentar pensar nisso (talvez pra não endoidar de vez) e ficava lá só divagando, contemplando e saboreando aquela beleza toda.
Repentinamente, no meio daquela noite calma, cerca de 01:30 horas, um grande estrondo, um grande clarão, um raio, um relâmpago, um trovão – mas, como?! Sem uma nuvem no céu! Nem ventando estava! Quem viu de longe disse que parecia uma grande bola de luz, alaranjada, amarelada, de vez em quando avermelhava; veio riscando o céu, desapareceu, depois apareceu do outro lado e sumiu no horizonte. Dias mais tarde, análises por triangulação, baseadas nos testemunhos de diversas pessoas que presenciaram o fenômeno de diferentes pontos de observação, identificaram o local do suposto desaparecimento da coisa como sendo um ponto sobre a propriedade rural dele, desse nosso amigo amante das estrelas, o qual vinha sendo dado como desaparecido desde a ocorrência do tal evento. Desapareceu junto com o desaparecimento!
Família desorientada, desesperada, há muito já pensavam em seqüestro, lógico, mas nada de contato, de pedido de resgate ou coisa assim. E certa noite êle reapareceu, no mesmo lugar, do mesmo jeito, com a mesma roupa, com a cara mais limpa do mundo, levemente assustado, é verdade, mas não pelo que teria acontecido com êle, mas, sim, pelo assombro que via na cara dos outros. Acontece que pelo calendário comum de todo mundo completava-se exatamente 93 noites e dias que êle estava sumido, sendo que para êle parecia ter transcorrido apenas algumas horas. Era como se êle estivesse saído para dar umas voltas por ali mesmo, pelas redondezas, e agora estivesse voltando para casa, só isso.
Só que êle não se lembrava muito bem de onde estivera, ou do que esteve fazendo, nessas suas poucas horas de sumiço. Mas, lá no fundo, no intimo, no recanto mais profundo do seu ser, sabia que algo muito importante tinha acontecido: algo infinitamente maior do que aquele pequeno lapso de tempo que êle julgava ter ficado ausente. Foi dormir, estava exausto demais para conversar sobre isso, ou qualquer outra coisa, agora. Deitado na cama, naquele doce interlúdio entre o primeiro sono e o sono profundo, começou a recordar-se vivamente de alguma coisa que seguramente experimentara horas antes. Levantou-se num sobressalto, assustado, trêmulo, quase apavorado, correu pro notebook colocado em cima da mesa. Um sentido de urgência muito grande se instalou em sua mente. De alguma forma misteriosa sabia que seu tempo restante de vida era muito curto – devido ao acelerado processo de degeneração física e, principalmente, neurológica que o acometia, como ônus das violentas transições biológicas de estado, ocorridas ao longo da viagem no espaço-tempo. Precisava começar a escrever sua experiência rapidamente. Começou por onde ia lembrando, por impulso, por espasmos, pelos meios:
As luas gêmeas quase tocavam a linha reta do horizonte, a maior seguindo a menor, e bem no meio, no zênite, daquele imenso céu amarelado já dominava o incrível sol deles, azulado, azul-piscina. Perguntei novamente para quem me acompanhava, meu espécie-de-guia, o nome do planeta. Nome muito estranho, não consigo lembrar. Mas êle repetiu para mim os dois nomes do sol, o nome dado por êles e o nome dado por nós: Alnitak (*). Esse eu conhecia muito bem. Aliás, foi o único nome que reconheci...
(*) Uma das três estrelas do Cinturão de Órion, também conhecidas popularmente como as “Três Marias”.
Robert Silvercore
PS: Esses tres contos, Alnitak I II e III, considerados como um unico em tres partes, ganharam o 2o. lugar no Concurso Maracaja - RJ, de 2009 / tema: Astronomia.
Gostei muito, além do tema ser de meu interesse, me envolveu em um manto de mistério e assim entretida, me deixei levar...
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