segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

De Arembepe a Jaua'

De Arembepe a Jauá


Comecei a pensar em escrever sobre Arembepe a Jauá desde os primeiros dias do ano de 2010 d.C., mas isso foi atropelado, e teve que ser postergado, no mínimo duas vezes: pelos Irmãos do Apagão e pelo Encontrão de Conceição, dois eventos posteriores que exigiram registros mais urgentes e imediatos.
Esse foi assim: no primeiro domingo resolvi, como imediata e urgente resolução de ano-novo – não daquelas que, pretensiosamente, a gente faz “pra vida toda”, mas somente pra hoje –, antecipar o que houvera programado para segunda-feira: fazer a tão por décadas desejada e postergada caminhada, na praia, rumo norte, cerca de 5,5 km, de Interlagos a Arembepe.
Não entendia bem porque, mas, agora, pensando durante a própria caminhada, sei porque nunca antes fizera tal percurso, ao longo de tantos anos freqüentando essas praias: Acontece que antes, nas minhas antigas e mais longas férias, em que eu tinha tempo suficiente, as minhas filhas eram muito novinhas, crianças ainda, e não me davam folga nem oportunidade para isso. Quando já eram mais grandinhas, nas férias mais recentes, elas me “liberaram”, mas eu já não tinha tanto tempo disponível, pois ficava por aqui apenas alguns dias, só e normalmente na semana entre o Natal e o Ano Novo.
Atualmente, enfim, tenho tempo e liberdade suficientes e disponíveis para isso; na verdade, hoje, elas, literalmente, “não estão nem aqui” – sem contar que, antes, eu era casado com a mãe delas e, hoje, estamos divorciados – muito bem, em paz, amizade e harmonia, diga-se de passagem –, o que significa que tenho ainda mais tempo e espaço disponíveis.
Bem, após essa talvez inútil e desnecessária digressão explicativa, voltemos a por os pés na areia quente da praia:
Depois, na terça-feira, último dia dessa temporada de veraneio na Bahia, por absoluta falta do que fazer, eu decidi completar a caminha rumo ao sul, cerca de 2,5 km, até o próximo povoado: Jauá.
É incrível como uma caminhada a beira-mar faz bem pro corpo, pra mente e pro espírito! Faz bem pra tudo! Principalmente pra mineiro, e mais ainda pra mineiro que já morou no litoral e teve que voltar pras montanhas. Toda essa imensidão de água, esse interminável areal, todo esse sol fabuloso, esse onírico e inebriante céu profundamente azul! Essa fantástica sensação de liberdade e de expansão física, corporal e espiritual!
Sei que muita gente já falou e escreveu sobre isso, mas eu tenho cá comigo a minha teoria sobre isso (me desculpem os pleonasmos, mas são propositais mesmo! É mera tentativa de reforçar as idéias): A fascinação do ser humano pelo mar, pelas imensas águas, deve-se simplesmente ao fato de ele ter sido criado, ter sido gerado, lá, nas águas dos oceanos! Alias, essa foi a origem comum de todos os seres animais da Terra. O homem, antes de ser homem, já foi ameba, água-viva, girino, sapo e macaco (e, provavelmente, foi quando era sapo que êle resolveu pular pra fora dágua, e deu no que deu, senão poderíamos ter nos tornado belos tubarões ou baleias).
E fiquei pensando como um mar e uma praia podem ser tão admiravelmente maravilhosos e inacreditável e contraditoriamente complexos e simples, ao mesmo tempo! Por isso alguém já disse também, e eu concordo plenamente, que “the simple is the really beautiful” (o simples é o realmente belo) ou vice-versa. Eu poderia ter caído morto ali, naquela hora, nas areias ou nas águas de Arempebe, Interlagos ou Jauá, e estaria tudo perfeitamente bem; minha vida estaria plenamente satisfatória e completa na própria morte!
Por falar em Arembepe – onde até hoje existe uma aldeia de, resistentes, abnegados, anacrônicos e, é claro, malucos hippies –, há décadas corre uma (in)certa história pelos meus círculos familiares a qual reza e jura-de-pé-junto que eu já morei lá! Eu juro que, de tanto ouvir essa história, também ando meio em dúvida. Será?! Que eu já estive lá um dia, nos anos 70, em mera e circunstancial visita de reconhecimento, isso eu lembro sim. Fui, inclusive, acompanhando (ou sendo levado por) meu amigo-cunhado-irmão Marcelo Fonseca, numa de nossas memoráveis, intermináveis e indetermináveis viagens pelo litoral baiano (assim eu acho). Mas isso são outras histórias... Mas, olha aqui, daí a ter morado lá, em Arembepe, com os hippies, e ter enhippado de vez, isso eu não tenho muita certeza, não! Vai ver naquele dia talvez eu tenha ingerido, inalado ou tragado alguma substancia tóxico-alucinógena realmente estragada, e tenha resolvido ficar por lá, em tratamento, por uns dias, umas semanas, uns meses, uns... quem sabe?! Pode ser...
Depois dessas novas e também desnecessárias divagações temporais – não sei como posso derivar tanto, numa praia tão reta! – voltemos novamente pra areia firme de Interlagos:
Nessas longas caminhadas praianas me ocorreu um pensamento, um insight, muito interessante e deveras fundamental pro resto de toda a minha vida doravante (mais outra redundância de reforço!): que a minha liberdade, irresponsabilidade e despreocupação “passageiras” dos primeiros anos de férias nesse lugar, agora, de repente, percebo saborosamente, se tornaram “permanentes”; que podem ser perfeitamente totais, plenas e permanentes!
Corrobora e comprova isso o fato de que eu estou acabano de ler “A Cabana” de William P. Young, e, então, confirmei nele essa coisa que já pressentia e suspeitava há tempos: que grande parte das “responsabilidades” que julgava minhas, como, por exemplo, preocupar-me com como serão os meus dias finais nesse planeta, não são minhas, de forma alguma. São, sim, de inteira, integral e absoluta responsabilidade de Deus!
Então, adeus, à Deus! A Deus o que é de Deus! Toma o que é Teu, Deus!
E, afinal, agora me lembro bem, o nosso contrato de vida, válido para essa minha atual existência encarnada na Terra, reza clara e indubitavelmente que coisas como essas são de absoluta e exclusiva responsabilidade dÊle – e, inclusive, num desses dias, numa dessas caminhadas, eu até entrei numa das casas dEle, na bela e aconchegante capelinha do condomínio e, em breve meditação e oração, nós, eu e Êle, reiteramos e renovamos esse nosso contrato.
Mas, é claro que eu, aqui nesse maravilhoso lugar, também tenho as minhas grandes responsabilidades – que, creio, venho cumprindo régia e religiosamente bem –, tais como: pra que rumo eu vou caminhar na praia de manhã; o que é que eu vou beber à tarde, no almoço; que tipo de música vou ouvir à noite; e coisas desse porte e magnitude.

P.S. – 1: Pra quem quiser saber onde fica Arembepe, Interlagos e Jauá (todas no município de Camaçari): Pegue um bom mapa da Bahia e veja lá, no litoral norte, aproximadamente 20 Km acima de Salvador (via Estrada do Coco).

P.S. – 2: Pra quem quiser fazer essa caminhada, tenho três dicas / advertências:
1 – Cuidado quando estiver a aproximadamente 1 km de Arembepe, pois lá a areia é muito grossa e há muitas pedras (arrecifes) – leve sandálias ou algo equivalente.
2 – Se quiser beber uma água de coco – o que é bastante recomendável, pelo menos na chegada em Arembepe –, leve dinheiro trocado, pois R$10,00 (dez reais) já é uma fortuna pros barraqueiros de lá (nenhum deles tem troco pra 10!)
3 – Se cansar muito e quiser voltar de ônibus, de Arembepe pra Interlagos, é fácil: na praça principal de Arembepe pegue o ônibus que vai pra Camaçari (tem a cada 30 ou 40 minutos) e peça ao motorista pra descer na portaria de Interlagos (você vai andar mais uns 1,5 Km da portaria até o meio do condomínio, mas, tudo bem, se livrou de 4 km! Ou então ligue pra alguém te buscar, ou vá de carona!)

Caminhando no Vale das Pedras

Caminhando no Vale das Pedras

Neuma, Vitautas, Ana Elisa, Renato, Lara, Taís, Vinicius, Nara, Nina, Liza, Chico, Lena, Tatiana, Zelinha, Mariana, Edmar, Roberto, Mainha, Bê, Aninha, Emerson, Celina, Marcos, Karina, Eduardo, Rodrigo, Lívia, Fernanda, Markus, Paulo, Suzana, Tetê, Bruno, Regina, Evaldo, Luiza e Júlio. Estes são os trinta e sete abnegados, positivos e animados participantes desse não tão familiar e singular evento-aventura em família.
Isso aconteceu nos dias 04, 05, 06 e 07 de fevereiro de 2010, de quinta-feira a domingo, uma semana antes do carnaval (data mais bem declarada e registrada, impossível!)
O local de apoio e repouso, a sede logística e operacional, do encontro, foi a Pousada Vale das Pedras, em Conceição do Mato Dentro, MG, a qual foi totalmente invadida e integralmente ocupada pelas tropas familiares.
O motivo oficial era comemorar os aniversários de três, quatro, ou mais, integrantes da família (de fevereiro, são tantos...), mas, a motivação real, muito claramente confessada, era simplesmente reunir a turma toda.
O objetivo, a meta – ou os dois destinos geográficos finais –, era chegar até as altas cachoeiras do Tabuleiro e do Rabo de Cavalo, no Parque Estadual da Serra do Intendente (Serra do Cipó / Serra do Espinhaço). Vale ressaltar que o primeiro, de trilha mais longa, mais difícil e super pedregosa – com pedras de toneladas, que só se vence pulando ou arrastando, e morros, quase paredões de pedra, que só se ganha escalando ou rolando –, foi conquistado por onze bravos e intrépidos participantes (Neuma, Vinicius, Roberto, Mainha, Aninha, Karina, Fernanda, Markus, Paulo, Suzana e Tetê). E o segundo, de trilha relativamente mais curta, mais fácil e menos acidentada, foi vencido por vinte e cinco não menos vitoriosos e laureados integrantes (Neuma, Ana Elisa, Renato, Lara, Taís, Vinicius, Zelinha, Mariana, Edmar, Tatiana, Roberto, Mainha, Bê, Aninha, Emerson, Celina, Marcos, Karina, Rodrigo, Lívia, Fernanda, Markus, Tetê, Bruno e Evaldo).
Além das caminhadas às cachoeiras, poderíamos seguir falando desembestadamente sobre todos os fatos e eventos interessantes, detalhes hilariantes e casos e causos contados ou ocorridos nesse encontro, tais como: as etílicas reuniões noturnas na pedra do mirante, transformada em observatório galáctico; a garrafa pet de cachaça-gasolina do Roberto; o quando, como e aonde o Chico vai tomar Nutrem; a entrada da Terra nos Anéis de Alcione do Evaldo; Liza e Chico numa enchente em Moc; as histórias de Monte Carlo contadas pela Liza; a festa-baile de aniversário pós-réveillon e pré-carnaval, com direito a trenzinho e tudo mais; as belas e profundas palavras do Chico para os aniversariantes e para todos; as lágrimas do Marcos, do Roberto e de outros, com as palavras do Chico; o exame anti-doping da Neuma; as fotos tiradas pelo Bê; os fogões da Suzana; a lindeza, a esperteza e a tagarelice da Nina; .........
(Seguindo as práticas do moderno mundo da comunicação interativa, abrimos, neste ponto, um espaço para você, participante do evento, colocar a sua contribuição. Se você se lembra de alguma outra coisa, qualquer bobagem que seja, e queira registrá-la, apague esse parêntesis e escreva-a aqui)
Bem que gostaríamos de explorar um pouco mais esses palpitantes assuntos, mas, como não dispomos de conhecimento de causa mais profundo ou memória recente um pouco mais suficiente, permitam-nos fechar esse relato com duas idéias não menos interessantes:
A primeira, é que apesar do número de irmãos de fato, consangüíneos, filhos do mesmo pai e da mesma mãe, participantes desse encontro, ser apenas oito (Neuma, Liza, Lena, Zelinha, Roberto, Celina, Paulo e Regina), os demais vinte e nove participantes (filhos, filhas, netas, genros, noras, cunhados, agregados, etc), tornaram-se iguais. Pois ao compartilharem da mesma alegria, do mesmo prazer e das mesmas diversões do evento, abrigados e protegidos sob o mesmo santo espírito de confraternização e de celebração da paz, da vida e do amor, todos os trinta e sete tornaram-se igualmente irmãos, uma verdadeira irmandade – talvez tenham sido consagrados, nesse evento, até mesmo como irmãos espirituais, em mesmo nível, categoria e hierarquia.
A segunda, é que para poder percorrer e vencer as longas, árduas e exaustivas trilhas dos vales das pedras, só para chegar a uma bela cachoeira e usufruir de suas águas refrescantes e de suas paisagens inebriantes, eles realizaram uma outra caminhada e conquistaram um outro objetivo, correlatos, mas ainda mais relevantes e valiosos. Pois, para isso, eles saíram de suas casas, viajaram 100, 180, 400 km, ou mais – teve gente (Fernanda e Markus) que até atravessou o Atlântico para chegar lá –, só para estar dois ou três dias junto com os seus irmãos, usufruindo o calor e o frescor dessa fugaz, mas importantíssima, convivência familiar.
Ao se despedirem, já com muitas saudades desse encontro, eles já pensavam no próximo, pro ano que vem ou pra esse ano ainda. Vai aqui, então, antecipadamente, o convite para todos, inclusive pros irmãos que não puderam ir nesse.
Finalmente, queremos registrar o nosso agradecimento muito especial à Celina, a comandante da tropa, que planejou e organizou tudo isso, inclusive a pousada, os passeios e as festas. Parabéns, Celina!!!

PS: para os fotógrafos da família: divulguem as suas fotos, pelo menos as mais significativas.

Quatro irmaos, um apagao e um fogao.

Quatro irmãos, um apagão e um fogão.
Sexta-feira, já de noitão, o Zé ligou pro Brumbe, seu irmão, dizendo que ia passar o fim de semana lá, no sítio dos irmãos. Brumbe, o irmão dono da casa questão, não acreditou muito não – já contava certo que o seu primeiro fim de semana do ano “ZOIO”, seria de solidão –, mas no sábado, à tardão, pra sua grande satisfação, lá chegaram eles: o Zé, seu filho Gui com a namorada Val e o Sergin, outro irmão. O Rafa, o quarto irmão dessa narração, já se encontrava por lá, assim com o Kustuka, não irmão dos quatro, mas irmão de um irmão de coração dos quatro – dos irmãos de sangue, só faltava o Paulin e o Luizin.
A intenção, obviamente, era passar juntos um bom fim de semana, sossegadão, tranquilão, nas beiras e dentro da piscina, debaixo desse solão de verão, com bastante cerveja gelada, umas batidas, até de limão, e um pingão – só um, porque mais é danação. No sábado, macarrão, e no domingo, um belo churrascão. Um trem danado de bão! Além disso, só um bom filme na televisão, preferencialmente de ação, e um montão de cd’s e dvd’s, é claro, de rockão.
Acontece que na tarde do sabadão, como freqüentemente ocorre nesse rincão, sucedeu mais um não tão inesperado apagão – falta de energia elétrica não prevista ou não programada de antemão. E tal apagão, para total contrariação do engenheiro eletricista dono do casarão, se prolongou por tempo muito além da sua inestimada e furada previsão: entrou pela noite adentro e madrugada afora, e eles ficaram na maior escuridão, à luz de velas e lampião.
Porém, como nada poderia atrapalhar essa rara e feliz reunião dos quatro e meio irmãos – naquelas alturas da noite e do golo o Kustuka já havia sido adotado como o quase quinto –, eles resolveram seguir com a normal programação: fazer um macarrão (na verdade, assar umas lazanhas congeladas, à moda e ao costume milenar do da casa irmão) e, mais tarde, ver e ouvir um bom e decente dvd do Pink Floydão (se a danada da luz voltasse, então).
Entretanto, sem energia elétrica, nada de micro-ondas, único aparelho-preparador-de-comida reconhecível, manipulável e de amigável operação por parte do irmão dono da casa, no seu grande cozinhão. O vistoso e moderníssimo fogão a gás – um Brastemp, cinco bocas, relógio digital, computador de bordo, etc – era para uso exclusivo das forças armadas, e amadas, devidamente preparadas, da casa, isto é, suas duas filhas, principalmente a dona de restaurante. Pois, para êle, pobre irmão, aquilo era como uma nave espacial alienígena ou um OCNI (Objeto Cozinhador Não Identificado) – Quando êle entrava na cozinha, virava a cara, tinha até medo de olhar para aquilo. Na verdade, gostava mesmo era só de ajustar o reloginho digital toda vez que a luz voltava, pois sentia imenso e inexplicável prazer em acertar e sincronizar periodicamente todos os onze relógios da casa (não se sabe pra que tantos!). Um grave T.O.C., pura falta do que fazer, puro ócio excessivo, Freud e/ou Kardec explicam.
Mas, deixando de lado essa insana digressão e voltando ao macarrão, ou melhor, às lazanhas e ao fogão, mais precisamente ao forno do fogão – brevemente, mais exatamente ainda ao botão do forno do fogão – lá foram eles, inapelável, inocente e incautamente, encarar o fogão a gás. Pro irmão dono da casa, o tal do Brumbe, isso era como penetrar numa misteriosa e tenebrosa selva tropical, ou pisar num planeta gasoso, desconhecido e extremamente perigoso.
Três irmãos em frente ao fogão (o quarto, o Rafa, de lado, só olhando e pensando que aquilo não ia dar certo de jeito nenhum): Abriram a tampa do forno. Pra iluminar melhor: um com vela acesa por cima, outro com vela de lado. Pra acender: um com isqueiro, outro com fósforos, outra ainda com vela acesa mesmo. Um gira o botão, outro coloca o fósforo, a vela ou o isqueiro. Gira o botão pra lá, gira o botão pra cá, pra esquerda, pra direita, sentido horário, sentido anti-horário. E dá-lhe fogo, dá-lhe chama, e nada do forno acender, nada nem de cheiro de gás. De gás, nem cheiro, e o botijão, com certeza, cheio. E agüenta cera de vela quente pingando nas mãos, nos braços, na tampa do fogão, no chão. Uma lambança. Uma inútil algazarra. Uma desvairada perda de tempo e energia (no caso calorífica). Que situação!!! Que falta que uma mulher faz, até pra ligar um fogão!!! – livraram a Val, única mulher no sitio, naquele momento, de qualquer responsabilidade no infortúnio, visto que, além de ela ser visitante de primeira vez, era muito nova pra poder ser cobrada dessas coisas por parte de cinco velhos marmanjos ignorantes.
Por fim, desistiram, o forno não acendia de jeito nenhum! – o irmão da casa, que estava morrendo de medo do fogão explodir, chegou até a argumentar, baseando-se em (seus) dados técnicos, científicos e estatísticos, e em informações irrefutáveis, obtidos de eventos de ordem culinária recentemente ocorridos naquela cozinha, que os bicos de chama do forno estariam entupidos por falta da devida limpeza ou de manutenção preventiva.
Lanternas, velas, panelas e lampião nas mãos, lá desceram eles, rumo à casa do Rafa, o quarto irmão (na verdade, o primeiro, por cronologia, hierarquia e sabedoria), à cata de forno que funcionasse, pois, como êste mesmo dizia: forno velho é que é forno bão! Varias idas e vindas ocorreram entre as casas do Brumbe e do Rafa, não só pra levar e buscar as lazanhas, como também pra verificar periodicamente o estado dos assados, visto que nenhum deles tinha a menor idéia do tempo necessário pra assar lazanha congelada num fogão a gás (o limitado, inepto e ignaro irmão Brumbe só sabe do tempo no micro-ondas!)
Nessas idas e vindas, o irmão da casa, invariável e constantemente, ia gritando alucinadamente – diga-se de passagem, com toda razão – o seu mais recém criado e apropriado impropério: CFDP!!! CFDP!!! CFDP!!! (*). Recitava essa maravilha, não tanto por causa da falta do micro-ondas, mas, sim, porque quanto mais o tempo passava e a luz não voltava, êle ia vendo frustrado o seu desejo de poder ligar o Home Theater pra mostrar o show do “Pink Floyd live at Pompeii” pro Zé, pro Sergin e pro Gui.
Tarde da noite, enfim, e romanticamente à luz de velas, eles conseguiram jantar suas fartas e saborosas lazanhas, regadas a bons e honestos vinhos, acompanhadas de prazerosas, despreocupadas e hilariantes conversas-pra- jogar-fora, que giraram, invariavelmente, em torno de peripécias da infância e da adolescência. É muito interessante observar o que acontece quando um grupo de velhos irmãos se reúne pra conversar, especialmente se estiver chovendo muito álcool: os papos geralmente deságuam em enxurradas de incríveis histórias de criança, e as brigas de meninos, principalmente, transbordam deliciosa e abundantemente. Talvez isso funcione, felizmente, assim como uma espécie de terapia sócio-emocional grupal – se for isso mesmo, adeus psicólogos, psiquiatras e psicoterapeutas!
Naquela super ensolarada e quente manhã do domingo de verão, as conversas, dentro e fora da piscina, ainda rolavam em torno dos tópicos da noite anterior – meninos e fornos –, quando o meio irmão Kustuka chegou e perguntou se eles tinham lembrado de, além de girar o botão do forno do fogão, também mantê-lo apertado, até que o forno acendesse, pois era assim que a coisa funcionava. De prontidão, o Brumbe irmão, já pressentindo a gozação, correu pra casa e pro fogão em questão, pra testar a veracidade daquela afirmação, já reconhecendo sua perfeita correção antes mesmo de girar e apertar o tal botão. Voltando pra piscina, êle só fazia falar irônica e laconicamente: Me eximo de qualquer responsabilidade sobre isso, pois cansei de avisar que não entendo nada disso!...
Dá pra sacar que, pro resto do dia, o único assunto da turma foi a surra que o danado do botão dei em seus inaptos operadores, surgindo, inclusive a idéia de se registrar tal incrível façanha para a posteridade, e talvez, até, para a Rede Globo (em Cassetadas, Ciladas, Roubadas, ou coisa assim).
Findo o fim de semana, ao se despedirem, o irmão da casa reiterou e reclamou dizendo para os demais irmãos que esses encontros deveriam, e precisavam, se repetir com mais freqüência, mais amiúde, falando alguma coisa como: Oh, irmãos, não sumam tanto assim não! Vê se ocês aparecem mais por aqui, viu, seus sacanas!? Ao que todos concordaram, lembrando que da próxima vez, com certeza, iriam apreciar o tal do dvd do Pink Floyd; isso, se a CFDP(*) não os deixasse novamente no escuro, é claro!
Finalmente, vale ainda citar que, como a casa do Rafa era a única que ainda continuava sob o apagão, quando a equipe da CFDP(*) chegou, ainda no domingo, pra fazer a reparação, foi feita a constatação de que todo aquele apagão se dera devido a um puta curto-circuitão, causado por infiltração nos cabos do padrão do referido primeiro irmão.
1a. Conclusão (de caráter amplo, para o público em geral), ou inútil, pretensa e provavelmente falsa moral da história, visto que essa história não pretende ter moral nenhuma: Onde dois, três, quatro ou mais metem a mão, dificilmente resulta boa solução.
2a. Conclusão (de caráter específico, para o causo em questão): Quatro irmãos, de “fogão”, num apagão, jamais conseguirão girar e apertar, simultaneamente, um mísero botão para acender o forno de um simples fogão.
3a. Conclusão (de caráter pessoal, para o redator do causo): Esse tipo de encontro, esse convívio, mais freqüente, fraterno, saudável e amoroso com os irmãos, representa um passo precioso e fundamental no recém instaurado processo de libertação do isolamento e da solidão do irmão da casa em questão; ou seja, significa um importante degrau na busca da consolidação da verdadeira elevação e redenção, na autentica tentativa de progressão de um mísero, fraco, ignorante e titubeante ser humano em direção à superação e à evolução.

(*) CFDP: Leia-se “cefedepe”. Entenda-se “cemigfiladaputa!!!” (um puta palavrão)

Intersecao Temporal

Interseção Temporal

A missão fora muito bem sucedida: dos oito alvos selecionados, cinco (uma fábrica de munições de artilharia pesada, duas de armas leves, um aeroporto militar de apoio e um laboratório de aparelhos eletrônicos) estavam totalmente destruídos e os outros três (duas montadoras de veículos de esteira e uma usina termoelétrica) seriamente danificados e fora de operação por, no mínimo, seis meses – poderia-se dizer que o nível de êxito fora de 85%, por baixo. De volta para a ilha, a esquadrilha, composta de seis bombardeiros Hurricane, já havia cruzado dois terços do canal, retornando, intacta, sem baixas nem maiores danos, de mais uma incursão de bombardeio noturno no continente. Guardando a posição à direita na retaguarda da formação em duplo “v” da esquadrilha, estava o avião do tenente-coronel-aviador Stuart McHarris, na função de co-piloto e navegador.
Naquela manhã de maio de 1942, porém, uma forte tempestade, decorrente de uma imensa massa de CBs (nuvens Cúmulos-Nimbus), incomum naquela época do ano, se formara sobre o extremo sudeste da ilha, bem na rota de reentrada da esquadrilha em direção à sua base. Mudar o trajeto era impossível, os níveis de combustível das aeronaves não permitiam. E no momento exato em que os aviões penetraram nas densas nuvens, a tempestade começou a manifestar-se com uma intensidade de descargas elétricas raramente registrada naquela região.
Com menos de trinta segundos de vôo turbulento dentro daquela gigantesca massa cinzenta, uma fortíssima descarga elétrica envolveu completamente a aeronave de Stuart danificando seus instrumentos de tal forma que a tripulação foi obrigada a saltar de pára-quedas, abandonando-a por total insegurança de continuar voando. Como pularam todos praticamente juntos, durante a descida para terra cada um dos tripulantes podia ver, num raio de 200 metros, todos os outros companheiros. Todos contaram cinco, mas deveriam contar seis, faltava um. Já em terra, ao se reencontrarem, constataram: faltava Stuart.
Os destroços do Hurricane foram localizados, no dia seguinte, há poucos quilômetros do acidente. Peritos e técnicos da RAF vasculharam e examinaram minuciosamente cada pedaço, não encontrando sinal algum do corpo do co-piloto, nem o menor vestígio de sangue. Estranhamente seu pára-quedas continuava ali, perfeito e intacto, no encosto do seu assento no avião. E mais estranho ainda: o banco estava todo chamuscado, como se o corpo tivesse sido incinerado na posição exata em que estivera sentado.
Stuart McHarris, tenente-coronel-aviador da RAF (Royal Air Force), 34 anos, cidadão inglês de Manchester, jamais foi encontrado, vivo ou morto.

Havia transcorrido pouco mais de duas horas de viagem quando o Airbus A-320 da TAM, em seu vôo de número 3890 na rota direta Recife-Manaus, começara a cruzar os céus do sul do Maranhão, naquela terça-feira, 27 de março de 2007, às 08:15 horas da manhã. Como freqüentemente ocorre naquela região nesta época do ano, uma rápida, mas forte, tempestade de final de verão se formara interceptando precisamente a rota do 3890. Assim que o avião entrou nas espessas nuvens CBs, uma intensa tempestade elétrica teve inicio com contínuos raios envolvendo completamente a aeronave por todos os lados. Uma das descargas foi tão potente e circulou tão próxima do avião que gerou altas correntes elétricas induzidas na asa direita – onde, inadvertidamente, na última manutenção preventiva, uma pequena ferramenta metálica fora deixada, estabelecendo um perigoso contato metálico com os tanques de combustível. Foi fatal. O faiscamento elétrico provocou a imediata ignição e explosão da massa de 30.000 litros de querosene que ainda restava nos tanques.
No dia seguinte, os destroços do Airbus foram encontrados há poucos quilômetros do desastre. Nenhum sobrevivente. Equipes de socorro trabalharam durante cinco dias ininterruptamente para localizar e resgatar os corpos dos 129 passageiros e 6 tripulantes do avião. Obtiveram êxito com 134, mas faltou um, apenas um: o passageiro da poltrona 22D, o biólogo Estevão Andrade da Silva, 34 anos, paulista de Ribeirão Preto. Uma coisa inusitada e inexplicável os oficiais da aeronáutica notaram, por época das perícias técnicas sobre as causas do acidente: o assento e o encosto da poltrona 22D apresentavam estranhas marcas de queimadura, estavam chamuscados e carbonizados, delineando o contorno da figura exata do corpo de um homem adulto que ali mesmo houvesse sido incinerado. As perícias e as buscas se encerraram poucos dias depois, sem que o corpo do Sr. Andrade da Silva tivesse sido encontrado. Foi dado como desaparecido.

Agreste nordestino brasileiro, em plena caatinga, quase um deserto, onze dias após, há cerca de vinte quilômetros ao norte do local da queda do avião: um pequeno grupo de lavradores, voltando da sua pequena e magra roça de milho e feijão, pela estradinha poeirenta, debaixo de um sol das cinco da tarde, ainda inclemente e abrasador, depara-se com um estranho homem vestido com roupas muito esquisitas – parecia com aqueles macacões que os trabalhadores da usina usam, acrescido de vários bolsos extras, no peito, nos braços e nas pernas, e um monte incontável de plaquetas e etiquetas coloridas, cheias de letrinhas e números indecifráveis (ainda mais por um bando de analfabetos).
O grupo, simples e gentilmente, apenas cumprimenta o homem, com seu costumeiro e humilde “tarde”. Não há resposta. Somente ouvem do homem uma fala monótona e mecânica, que para aqueles pobres roceiros, era ainda mais incompreensível e enrolada que suas vestes. Êle apenas dizia, repetida e incessantemente: I’m the aviator-lieutenant-colonel McHarris Stuart, serial number 44632785, of the fifty-third squadron of the RAF, based in New Hampshire, United Kingdom.

Robert Silvercore

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Casas abandonadas

Casas abandonadas

Nas minhas longas e rotineiras caminhadas por aqui, pelas redondezas do lugar onde atualmente eu moro, nos vilarejos da Quinta do Sumidouro, de Fidalgo e da Lapinha, tenho prazerosamente posto em prática um certo costume, um vicio, um quase Transtorno-Obsessivo-Compulsivo, que adquiri, ou me foi imposto, nos meus recentemente passados anos de estudante de arquitetura e urbanismo: observar atentamente, e fotografar eventualmente, casas e construções de todo e qualquer tipo, até mesmo um simples e antigo muro de pedra abandonado e em ruínas – um desses que começa no nada, termina em lugar nenhum e não cerca coisa alguma.
Casas como a minha, casas de campo, casas no campo, casas de fim-de-semana, casas de lazer, casas de prazer, casas de receber, casas de doar, casas para, enfim, sossegar, acomodar, aquietar, apaziguar, viver...
Dito isso, digo que tenho me deparado freqüentemente, com certa estranheza e até com um pouco de surpresa, com algumas dessas novas, belas, sólidas e bem construídas casas, inclusive com belos e limpos telhados ainda não manchados pelas intempéries – que inegavelmente denunciariam a idade avançada das mesmas –, todas aparentemente abandonadas, paralisadas.
Os sinais que lamentável e irrefutavelmente acusam isso são muitos e diversos, visto que, mesmo sendo casas de fim-de-semana, tais indícios não poderiam estar ali por semanas ou meses a fio, como os tenho verificado:
Uma cerca de arame farpado, na frente ou dos lados.
Entulhos de construção, em montes ou espalhados.
O muro da frente ainda por fazer, por erguer.
Paredes externas rebocadas, mas não pintadas.
Um carrinho-de-mão sujo, definitivamente encostado lá nos fundos.
Um jardim ainda sem plantas nem gramado, só ervas e fungos.
Um gramado alto, reclamando um zeloso aparador.
Um tímido, ou já descarado, mato crescendo ao redor.
Vãos de janela sem janelas.
Janelas sem vidros, nem tramelas.
Quando os tem, estão quebrados, trincados ou caindo pelas tabelas.
Vãos de portas com portas, mas sem fechaduras.
Varandas há muito tempo sem ver varreduras.
Varandas vazias, sem mobílias.
Madeirame de porta e janela ainda nu, sem verniz algum.
Nenhum canteiro nem horta, no quintal.
Falta de luminárias em geral, nem ao menos uma lâmpada ao léu.
E fico pensando em quantos sonhos desfeitos, desejos frustrados, projetos de vida rompidos e ideais destruídos, foram ali abandonados:
Um casal que se divorciou, se separou... uma mudança pra longe... os filhos que foram embora... famílias desagregadas... um homem abandonado... uma mulher abandonada... alguém que morreu, sumiu, desapareceu...
Mas, vai ver, não foi por causa de nada disso...
Foi por pura falta de grana, mesmo!

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Alnitak I

Alnitak I

Quebrando o silêncio quase absoluto do lugar, somente aquele leve e suave zumbido, como uma verdadeira droga sonífera sonora, vindo de longe, sabe-se lá o quê, sabe-se lá porque, sabe-se lá de onde. Parecia um pequeno motor, uma turbina talvez, algo que girava constantemente: uma maquininha fazendo funcionar alguma coisa. Estava deitando, ou levitando, sobre uma espécie de cama, que podia ser também uma grande poltrona, bastante confortável e aconchegante, e a torpeza do corpo denunciava um agradável estado de repouso. Talvez estivesse dormindo, sonhando, delirando. Uma estranha e benfazeja sensação de inconsciência, mas não de todo, melhor dizer de semiconsciência, pois permanecia um certo sentido de prontidão, de plantão, em alerta geral, tomando conta de tudo e procurando, incessante e inutilmente, até onde a vista alcançava, referenciais familiares naquele absurdo ambiente.

Olhando bem, aquilo até que parecia com uma cabine de avião, mas, com certeza, absolutamente, não era, de jeito nenhum! Um certo desconcertante, desnorteante e arrepiante sentimento, que brotava gelidamente do estomago, alardeava alarmantemente que a coisa era muito mais do que um simples Boeing. Algumas luzinhas aqui e ali, alguns botões lá e cá, era só o que poderia ser tomado, remotamente, como equipamentos de um jato comercial. Mas certas inscrições, parecendo letrinhas ou números – se é que realmente eram isso –, não guardavam qualquer semelhança com nenhum idioma conhecido sobre a face da Terra, em todos os tempos, desde que o homem primitivo se flagrou pichando cavernas. Além disso, êle pôde facilmente verificar, como prova definitiva de que estava num local totalmente inusitado, que aquele salão era demasiadamente circular e avantajado (mais ou menos 50 metros de diâmetro) para ser uma cabine de avião. E pensava assim porque agora tinha plena certeza que aquilo voava, a grande velocidade e à noite, como acusavam as estrelinhas que passavam riscando o céu que se via pelas longas janelas horizontais localizadas nas laterais. Teve tempo ainda de perceber que talvez não viajasse sozinho, pois havia muitas outras proltronas-camas como a dele espalhadas pelo recinto. Só não conseguiu distinguir se estavam ocupadas ou não, porque todas tinham a mesma cobertura, algo como um semicilindro metálico e transparente, cheio de um tipo de gás azul claro, brilhante e espesso, que não permitia a visão do conteúdo. Não teve tempo, ou capacidade, de ver mais nada.

De repente um gigantesco turbilhão de luz e cores, girando numa imensa espiral frenética e alucinante, se precipitando no infinito a uma velocidade vertiginosa – essa foi a única e pobre descrição que êle pôde dedicar ao fenômeno –, tomou conta de tudo. Melhor dizendo, se tornou tudo. Naquele momento êle teve a nítida impressão de que o que vira e sentira até então era uma mera introdução, uma simples preparação, um estágio de transição, para algo muito mais importante que viria logo em seguida. Era como se, antes, êle estivesse esperando na sala de embarque de um aeroporto e, agora, sim, estava realmente dentro do avião e levantando vôo.

Êle gostava muito de caminhar noite adentro pelos largos gramados defronte a sua casa de campo, e aquela noite estava perfeita. 23:30 horas, sem lua no céu nem luzes em terra, firmamento limpíssimo e estrelado, lindíssimo, sem uma nuvenzinha sequer atrapalhando o cenário. Saturno, Órion, Júpiter, Canis Major, Columba, Lepus, Pyxis, Puppis, Vela, Carina, Crux, Musca, Centaurus, Vênus, Circinus, Lupus. Dava pra identificar e contemplar perfeitamente os principais viajantes que cruzavam a Via Láctea, naquele momento, de sudeste para noroeste. Nessas horas deixava-se levar, entregava-se, era tragado, absorvido, absorto, pelo esplendor do cosmos e só conseguia tentar pensar em duas coisas: no infinito espacial e no eterno temporal, seus dois grandes mistérios insondáveis e insolúveis. Como é que pode? Espaço e Tempo sem fim! Infinitos! Eternos! Mas logo êle desistia de tentar pensar nisso (talvez pra não endoidar de vez) e ficava lá só divagando, contemplando e saboreando aquela beleza toda.
Repentinamente, no meio daquela noite calma, cerca de 01:30 horas, um grande estrondo, um grande clarão, um raio, um relâmpago, um trovão – mas, como?! Sem uma nuvem no céu! Nem ventando estava! Quem viu de longe disse que parecia uma grande bola de luz, alaranjada, amarelada, de vez em quando avermelhava; veio riscando o céu, desapareceu, depois apareceu do outro lado e sumiu no horizonte. Dias mais tarde, análises por triangulação, baseadas nos testemunhos de diversas pessoas que presenciaram o fenômeno de diferentes pontos de observação, identificaram o local do suposto desaparecimento da coisa como sendo um ponto sobre a propriedade rural dele, desse nosso amigo amante das estrelas, o qual vinha sendo dado como desaparecido desde a ocorrência do tal evento. Desapareceu junto com o desaparecimento!

Família desorientada, desesperada, há muito já pensavam em seqüestro, lógico, mas nada de contato, de pedido de resgate ou coisa assim. E certa noite êle reapareceu, no mesmo lugar, do mesmo jeito, com a mesma roupa, com a cara mais limpa do mundo, levemente assustado, é verdade, mas não pelo que teria acontecido com êle, mas, sim, pelo assombro que via na cara dos outros. Acontece que pelo calendário comum de todo mundo completava-se exatamente 93 noites e dias que êle estava sumido, sendo que para êle parecia ter transcorrido apenas algumas horas. Era como se êle estivesse saído para dar umas voltas por ali mesmo, pelas redondezas, e agora estivesse voltando para casa, só isso.

Só que êle não se lembrava muito bem de onde estivera, ou do que esteve fazendo, nessas suas poucas horas de sumiço. Mas, lá no fundo, no intimo, no recanto mais profundo do seu ser, sabia que algo muito importante tinha acontecido: algo infinitamente maior do que aquele pequeno lapso de tempo que êle julgava ter ficado ausente. Foi dormir, estava exausto demais para conversar sobre isso, ou qualquer outra coisa, agora. Deitado na cama, naquele doce interlúdio entre o primeiro sono e o sono profundo, começou a recordar-se vivamente de alguma coisa que seguramente experimentara horas antes. Levantou-se num sobressalto, assustado, trêmulo, quase apavorado, correu pro notebook colocado em cima da mesa. Um sentido de urgência muito grande se instalou em sua mente. De alguma forma misteriosa sabia que seu tempo restante de vida era muito curto – devido ao acelerado processo de degeneração física e, principalmente, neurológica que o acometia, como ônus das violentas transições biológicas de estado, ocorridas ao longo da viagem no espaço-tempo. Precisava começar a escrever sua experiência rapidamente. Começou por onde ia lembrando, por impulso, por espasmos, pelos meios:

As luas gêmeas quase tocavam a linha reta do horizonte, a maior seguindo a menor, e bem no meio, no zênite, daquele imenso céu amarelado já dominava o incrível sol deles, azulado, azul-piscina. Perguntei novamente para quem me acompanhava, meu espécie-de-guia, o nome do planeta. Nome muito estranho, não consigo lembrar. Mas êle repetiu para mim os dois nomes do sol, o nome dado por êles e o nome dado por nós: Alnitak (*). Esse eu conhecia muito bem. Aliás, foi o único nome que reconheci...

(*) Uma das três estrelas do Cinturão de Órion, também conhecidas popularmente como as “Três Marias”.

Robert Silvercore

PS: Esses tres contos, Alnitak I II e III, considerados como um unico em tres partes, ganharam o 2o. lugar no Concurso Maracaja - RJ, de 2009 / tema: Astronomia.

Alnitak II

Alnitak II

As duas luas gêmeas quase tocavam a linha reta do horizonte, a maior seguindo a menor, e bem no meio, no zênite, daquele imenso céu amarelado já dominava o incrível sol deles, azulado, azul-piscina. Perguntei novamente para o que me acompanhava, meu espécie-de-guia, o nome do planeta. Nome muito estranho, não consigo lembrar. Mas êle repetiu para mim os dois nomes do sol, o nome dado por êles e o nome dado por nós: Alnitak. Esse eu conhecia muito bem. Aliás, foi o único nome que reconheci durante toda essa viagem. Estávamos num gigantesco planalto sem fim, numa cidade muito bonita e agradável, moderníssima, de arquitetura predial e traçado urbano bastante arrojados, suspeitamente parecida com a capital brasileira, Brasília – diferindo desta apenas pelos imensos e densos bosques e florestas, que a cercavam por todos os lados. Quase nenhuma circulação de gente e veículos nas grandes vias terrestres que, com suas áreas verdes, espelhos dágua e estranhos pátios, pistas e praças, deveriam servir mesmo era como áreas de lazer e práticas esportivas. O movimento maior estava nos céus, apinhado daqueles pequenos veículos aéreos, parecendo microônibus, deslocando-se silenciosa e ordenadamente de um prédio para outro e para outros locais fora da cidade – provavelmente para outras cidades.
Num de nossos freqüentes encontros entre visitantes e nativos, que eram assim como um tipo de reunião-palestra-curso, fiquei conhecendo um pouco mais, ou o suficiente, a respeito de certos assuntos sobre os quais guardava imensa curiosidade: as estruturas e as instituições sociais, políticas, econômicas, religiosas e espirituais daquele povo. Quanto ao social-político-econômico, o espécie-de-chefe do meu espécie-de-guia esclareceu que ao longo de sua tri-cento-milenar história eles haviam experimentado de tudo: impérios, teocracias, ditaduras, monarquias, reinos, anarquias, sacro-impérios, repúblicas, parlamentarismos, oligarquias, democracias, etc, em todos os matizes e variantes possíveis, socialistas, capitalistas, comunistas, absolutistas, relativistas, etc, que estas entidades organizacionais pudessem proporcionar. Nada deu certo, muito pelo contrario. Somente nos últimos cinco mil anos, em que o planeta está, enfim, unificado e pacificado como uma única nação, sob um único governo global, é que as coisas começaram a dar certo. O sistema atual é algo parecido como uma democracia-social-liberal parlamentarista, meio capitalista, meio comunista, com liberdade individual total, isto é, ninguém é obrigado ou coagido há viver sob o establishment. Por exemplo, um anarquista, um racista, ou um fundamentalista religioso, pode perfeitamente procurar, ou até fundar, um feudo, um grupo, um partido, que corresponda às suas aspirações político-sociais; e se porventura um dia estes constituírem força suficiente para desbancar o regime posto, então, nesse dia, e somente nesse dia, se verá o que fazer.
Quanto ao que chamamos de instituições religiosas, nada. Quanto ao que chamamos de instituições espirituais, tudo. Já tiveram seus Cristos, seus Budas, seus Maomés, seus Moisés, e nenhuma instituição ou estrutura religiosa derivada, ou fundada, em nome destes, deu certo ou foi produtiva. Apenas os aspectos, preceitos, ou fundamentos estritamente filosóficos e espirituais destas entidades sobreviveram e foram positivamente produtivos para a vida política, social e econômica, individual ou coletiva, das pessoas. Porém, da mesma forma que ocorre no sistema político-sócio-econômico, a liberdade de culto e expressão religiosos é plena e é direito garantido a quem quer que seja, individual ou coletivamente.
Certo dia fomos visitar os dois satélites naturais, as duas luas gêmeas, muito parecidas com a nossa, que estavam quase em uma singular conjunção cósmica. De volta ao planeta, pudemos observar um fantástico eclipse lunar parcial, de uma lua sobre outra.
Mas, a grande surpresa, o ponto culminante, a revelação maior, o fato mais importante, de toda essa jornada, ficou para o final, quando eu já estava retornando, ou sendo devolvido, para casa. Pois foi só então que ganhei coragem suficiente e resolvi perguntar ao meu espécie-de-guia – talvez um dia lembre seu impronunciável nome – o que eles conheciam e, principalmente, quais eram seus interesses a respeito da minha Terra. E êle me revelou a surpreendente e estonteante história, que resumidamente é a seguinte: Há cerca de 30.000 anos (deles) atrás, ou 15.000 dos nossos, quando eles iniciaram as suas explorações espaciais de longo alcance, de um sistema estelar para outro, com naves de grande porte (mais de 20 tripulantes), decidiram, obviamente, começar pelos sistemas mais próximos, entre os quais este cuja estrela-mãe chamamos de Sol. Aqui chegando, descobriram com grande entusiasmo e satisfação que o terceiro planeta desse sistema, que denominamos Terra, era incrivelmente parecido com o seu planeta de origem. E possuía todas as condições básicas e necessárias para o estabelecimento de vida inteligente; perfeito para seres como eles – o nível da força de gravidade, a fertilidade do solo, a composição atmosférica e, principalmente, a grande abundancia de água, foram os fatores determinantes; aliás, o nome que eles deram para a Terra, traduzido para nós, é justamente este: Água.
Como a vida animal encontrava-se num estágio muito primitivo, incipiente, e ainda não se distinguia por aqui nenhum ser inteligente que pudesse se tornar dominante – os macacos de maior porte, apesar de serem de espécie similar à deles, levariam ainda alguns milhões de anos para conseguir – eles resolveram fundar aqui a sua primeira colônia interestelar em larga escala (interplanetárias, em pequena escala, já tinham cinco colônias, utilizadas basicamente para pesquisas cientificas e exploração mineral, localizadas no próprio sistema de Alnitak). Praticamente toda a tripulação, cerca de 60 pessoas, metade homens, metade mulheres, se candidatou a colono, e foi instalada aqui com todo o conhecimento cientifico e capacidade tecnológica suficientes para desenvolver uma grande civilização. Perguntei, então, qual era o motivo das visitas, do retorno, deles à Terra (ou Água). Resposta: a atual situação política, social, econômica e ambiental da colônia não andava nada bem, caminhavam rapidamente rumo à autodestruição, o que não era nada bom. Precisavam observar, investigar as causas; sentiam-se na obrigação, no dever, de tentar corrigir, de procurar ajudar; talvez até intervir diretamente, o que seria uma ação extremamente não recomendável e perigosa.
Muito atordoado e desconfiado solicitei ao meu espécie-de-guia, de um modo um tanto audacioso e desafiador, provas concretas e irrefutáveis de toda aquela história maluca que êle contava, ao que, paciente como sempre e quase ironicamente, êle logo atendeu. Informou-me que “provas concretas e irrefutáveis” poderíamos facilmente obter quando resolvêssemos explorar, investigar e decifrar, seriamente, à luz dos nossos ancestrais conhecimentos filosóficos e espirituais (mas nunca “religiosamente”, ou por simples fé), o que está “escrito”, por “dentro” e por “fora”, nas pedras dos mais antigos monumentos arquitetônicos do planeta – citou, especial e enigmaticamente, os conjuntos das pirâmides de Gizé, no Egito, e de Teotihuacan, no México. Dito isso, apontou para uma grande tela que fez surgir à nossa frente, na qual apareceram três desenhos, ou fotos espaciais, lado a lado: a formação das três pirâmides de Gizé, a formação das três pirâmides de Teotihuacan e a formação das três estrelas do que chamamos de Cinturão de Órion (as nossas tão conhecidas Alnitak, Alnilam e Mintaka).
Então foi a vez dele perguntar, depois de me pedir para observar e analisar atentamente as disposições nas três figuras – absolutamente semelhantes entre si com relação aos tamanhos, proporções, posições, alinhamentos e inclinações relativas dos seus três objetos –, se eu achava que aquilo era mero acaso ou coincidência.



Robert Silvercore

Alnitak III

Alnitak III

O espécie-de-guia apontou, então, para uma grande tela que fez surgir à nossa frente, na qual apareceram três desenhos, ou fotos espaciais, lado a lado: a formação das três pirâmides de Gizé, a formação das três pirâmides de Teotihuacan e a formação das três estrelas do que chamamos de Cinturão de Órion (as nossas tão conhecidas Alnitak, Alnilam e Mintaka).
Ai foi a vez dele perguntar, depois de me pedir para observar e analisar atentamente as disposições nas três figuras – absolutamente semelhantes entre si com relação aos tamanhos, proporções, posições, alinhamentos e inclinações relativas dos seus três objetos –, se eu achava que aquilo era mero acaso ou coincidência.
Depois desse astronômico, derradeiro e definitivo choque existencial, comecei a me sentir um pouco sufocado, meio sem ar, coração acelerado, peito apertado, pés sem chão, cabeça rodando a mil, suando frio, e sai correndo para fora, buscando ar livre, procurando o sol.
Lá fora, resgatando o equilíbrio, recuperando as faculdades básicas, respirando melhor e sentindo o agradável calor do sol – o sol deles! – na pele, eu já começava a aceitar que tudo aquilo não poderia jamais ser mero acaso ou coincidência; e que só podia ser mesmo coisa feita, arranjada, programada, planejada, projetada e construída, por eles.
Sentindo, apreciando e bendizendo o efeito calmante e revigorante da luz e do calor daquele sol, comecei, então, a pensar, a ponderar – numa luta desesperada para tentar restabelecer meus abalados sentidos físicos de orientação espacial – que o quê eu via ali, naquele exato momento, naquele céu, era muito mais que um simples sol (se é que se pode dizer que um sol é uma coisa simples), era também uma tal estrela que os antigos astrônomos da minha terra chamaram de Alnitak; a qual, à noite, alinhada com outras duas irmãs suas, participa do famoso conjunto das Três Marias!
Era muito estranho, e até um pouco engraçado, ficar imaginando as pessoas da Terra olhando para o céu à noite, procurando as Três Marias, e eu lá, coladinho nelas, quase sendo devorado e incinerado por uma delas.
Daí, conseqüentemente, e pelo que se pode chamar de uma simples questão de lógica associativa recíproca, ou reversa, passei a imaginar como seria ver, na noite deles, o sol da minha Terra como uma simples estrela no céu. E, para poder ver isso, a curiosidade foi tão grande quanto à ansiedade para que a noite chegasse logo.
Quando a noite, enfim, chegou, o meu espécie-de-guia nos mostrou um quadrante relativamente vazio no céu, onde se realçavam nitidamente três estrelas bastante brilhantes e isoladas. Elas estavam posicionadas há cerca de dez graus entre si, em relação ao nosso ponto de visão, e formavam um triangulo isósceles perfeito, com a base praticamente alinhada com o equador celeste e o vértice oposto apontando exatamente para o norte geográfico do planeta. As duas estrelas da base, dos vértices leste e oeste, eram mais ou menos do mesmo tamanho aparente e da mesma magnitude, mas a estrela do vértice norte era ligeiramente maior e mais brilhante que as outras duas.
Um outro guia, talvez um astrônomo, que nos acompanhava, fez, então, três precisos comentários e explicações sobre esse triangulo estelar: O primeiro, relativamente mais extenso e técnico, dizendo que as relações entre as medidas dos ângulos internos e as proporções dos lados e das alturas desse triangulo eram exatamente (e êle fez questão de ressaltar esse exatamente) as mesmas das nossas pirâmides de Gizé, na Terra (mais uma “transferência” de arquitetura cósmica?!) O segundo, um pouco menos técnico ou numérico, falando que aquela formação de estrelas sempre foi, e é, um importante referencial celeste para eles, por ser visível praticamente durante todo ano e por sempre apontar para a mesma direção no céu – assim como o Cruzeiro do Sul ou a Estrela Polar, para nós na Terra. E o terceiro, curto e simples: A estrela do vértice norte é o seu sol.
Para eles, um simples, mas muito importante, ponto apontando o norte; para nós, uma informação totalmente desnorteante, desconcertante.
Alguém, não me lembro se um dos nossos ou um deles, comentou alguma coisa sobre a importância do triangulo, dizendo que essa peculiar forma, assim como o círculo e o quadrado, contém algumas das relações geométricas e matemáticas mais fundamentais do nosso universo. Não consegui prestar muita atenção a isso, não porque já soubesse plenamente disso, mas, sim, porque, depois da revelação dessa incrível bússola estelar triangular deles, eu não conseguia parar de pensar no porquê o triangulo tem tanta importância e destaque na maioria das culturas e filosofias esotéricas, místicas ou religiosas da Terra – seria isso mais um caso de “transferência”, dessa vez do tipo sócio-cultural?!
Saí dessas minhas elucubrações, chamado pela voz do tal do meu espécie-de-guia. Êle não falava quase nada... Aliás, ali ninguém falava praticamente nada, nem precisava, pois a eloqüência da comunicação visual era mais que suficiente. Mas, lá, de pé debaixo daquele incrível céu noturno, êle pronunciou aquilo que, para os seus padrões de oratória, talvez tenha sido o seu maior e mais belo discurso:
A minha estrela, no seu céu, é um mero acessório, é uma pequena parte do cinturão que amarra as vestes de um imaginário ser cósmico. Mas, a sua estrela, no meu céu, é o principal, permanente e eterno referencial, é aquela que sempre norteou e guiou os caminhos da minha civilização.

Robert Silvercore

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Anhanhonhacanhuva

Anhanhonhacanhuva

Uma breve interseção espaço-temporal

Ainda que uma bela, densa e saudável vegetação, constituída por matas nativas com árvores de pequeno e médio porte, brava e teimosamente ainda persistisse em sua heróica resistência para continuar se realçando, se sobrepondo, e sobrevivendo, como paisagem predominante nas encostas norte daqueles suaves e delgados morros ao sul da lagoa, algumas extensas e desoladas clareiras, aqui e ali – certamente abertas para formação de pastagens para gado bovino –, já se achavam ameaçadoramente estabelecidas, há décadas, naquelas paragens. Mas isso, até ontem. Hoje, não mais. Agora não há mais nada, não há clareira alguma! Toda aquela cadeia de pequenas montanhas, com cerca de dez quilômetros de extensão, abrangendo de leste a oeste todo o horizonte ao sul da lagoa, das margens aos cumes, encontra-se, agora, totalmente coberta por uma única, compacta e magnífica massa verde. Mais que isso: as árvores estão muito mais altas, mais troncudas, mais robustas, mais fortes e mais... verdes! Muito mais verdes! De um verde intenso, mais escuro, mais encorpado. Por Pã, Silvano e Fauno! Por todos os gnomos, duendes e ninfas florestais! Tudo ali, agora, é uma imensa, contínua e estonteante floresta tropical, sem uma mísera clareirinha sequer.
Continuo minha já costumeira caminhada matinal – que, na verdade, se dá por volta das dez ou doze até às doze ou catorze, respectivamente; dia sim, dia não –, pelas trilhas das beiras da lagoa e redondezas, com passos não mais tão firmes, impávidos, pretensiosos e presunçosos, como até então, mas, de-agora-em-diante, um tanto-o-quanto mais hesitantes, claudicantes e cambaleantes, em função e decorrência do que tentarei explicar mais adiante.
Será possível que hoje, em plena sexta-feira “útil” (como se sábados, domingos e feriados fossem “inúteis”!), dia de intenso tráfego aéreo nessas bandas do céu, está acontecendo mais um “apagão aéreo” pelo país afora? O fato é que já são quase duas da tarde e ainda não vi um aviãozinho sequer passar por aqui! – com o tempo, tornei-me um profundo conhecedor da movimentação aeronáutica por esses céus: as principais rotas norte-sul do país, e do continente, passam obrigatoriamente por aqui, porque, além do aeroporto internacional que fica por detrás daqueles já citados morros ao sul da lagoa, tem um VOR (Vertical Orientation Radar) da Aeronáutica instalado perto daqui (cerca de 20 km a sudoeste, em linha reta). Ou será que os aeroportos, os VORs e os aviões, assim como as clareiras, também desapareceram?!
Tirando o olhar do céu e das montanhas e trazendo-o um pouco mais para perto, para a terra e para as águas, continuo a perceber uma seqüência absurda, infindável e inacreditável de coisas estranhas, perturbadoras e anacrônicas:
Tanto os bois e as vacas, que rotineiramente pastavam nas margens do lado de lá, quanto os cavalos e as éguas, que freqüentemente passavam nas margens do lado de cá, haviam desaparecido completamente do pedaço. De repente, num rápido relance, num vislumbre, achei ter visto quatro ou cincos veados passando correndo, saltitando, cruzando a picada bem à minha frente. Eu disse veados?! Foi isso mesmo o que eu vi, eram veados! Um pouco mais adiante, um bando de coelhos-do-mato, cerca de meia-dúzia, enormes, gordos, também passou correndo. Além de espantado, comecei a ficar também um pouco preocupado: de repente pode sair uma onça desse mato!
E as plantas e as flores! Incríveis, maravilhosas! Não entendo nada de flores e plantas (aliás, entendo de quê?!), mas aquelas, com certeza, qualquer bom desconhecedor verificaria logo tratar-se de vegetação extraordinária. Definitivamente não estavam ali até ontem. Cresceram da noite pro dia? Nas águas das marginais e ao longo de toda a margem da lagoa, flores e plantas admiráveis, imensas, intensas. Perfumes inebriantes, suavissimos, indescritíveis – não por mera força de expressão: realmente jamais havia sentido nada igual.
Olhando novamente para os céus, talvez até mesmo inconscientemente buscando vestígios, sinais, referencias – um aviãozinho só, que seja! um rastilhinho retilíneo de fumaça branca, que seja! – que me recolocassem de volta na nossa velha e boa “civilização”, o que vi? Ao invés de aviões, grandes pássaros, águias, gaviões. Gaviões já tinha visto, mas águias, com dois metros de envergadura, jamais! E o sem número de patos, paturebas, garças e cisnes (cisnes!) que infestavam as águas!? Céus e águas enlouqueceram! Caos generalizado! Absurdo total!
Voltando novamente para o chão, comecei a reparar direito por onde eu andava, ou aonde eu pisava: a familiar trilha de terra batida, com aqueles dois sulcos contínuos e rigorosamente paralelos, marca registrada da constante passagem dos pneus dos carros, já não existiam mais (ou seria mais apropriado dizer que não existiam ainda?!); o que se via era apenas uma única e tortuosa picada, denunciada pela ramagem amassada e socada, que permitia somente o transito de pessoas e animais. Nada de carros com rodas, ou coisa parecida. Levantei os olhos mais para frente, para o horizonte, em direção aos morros que fecham a lagoa ao oeste. Cadê os telhados? Cadê as casas? Cadê a igrejinha de duas torres? Cadê o vilarejo que estava ali?! Nada. Um absoluto, silencioso e paralisante nada! Assim como nos morros ao sul, naqueles também repousava apenas uma grande mata fechada. Na verdade, era sempre a mesma mata, a mesma floresta, em todos os morros, num ângulo de visão de 360o.
O único referencial geográfico reconhecível era o grande paredão de pedra calcária, a lapa, localizado na extremidade leste da lagoa, o que, aliás, era a única coisa capaz de me dizer, com certeza, que eu ainda estava no mesmo lugar da superfície da Terra onde eu estava quando toda essa loucura começou.
Gostava muito de viver essas experiências, esses deslumbrantes e aconchegantes fenômenos – naturais, físicos, espirituais, meta-fisicos, psíquicos, cósmicos, para-normais, psicodélicos, psicóticos, sei-lá-o-quê! Tudo junto? – de apurada e transcendente percepção sensitiva e extra-sensorial, que costumavam ocorrer dentro e fora de mim: hora andava com pés descalços no chão, de terra ou pedra, sentindo todo o seu calor, cheiro, cores, vibração e energia, a tal ponto que me integrava, e me entregava, ao ambiente e a paisagem, terras de um espaço longínquo, como um só corpo, eu no mundo, o mundo em mim; hora voava com a cabeça nas nuvens, vendo e percebendo, do alto, todo o céu e todo o universo, paisagens distantes no infinito, com toda a sua vida, vibração e energia, compondo um só ser, eu no universo, o universo em mim; hora eram essas duas coisas juntas, de uma só vez.
Porém, isso acontecia somente naqueles bons e velhos tempos, remotos, imemoriais, quando eu ainda era criança ou adolescente. Quando a gente fica adulto, envelhece, embrutece, e o coração e o espírito parece que endurecem e a gente não sente mais essas coisas. Ultimamente, nessas minhas freqüentes caminhadas, andava pensando muito naqueles ótimos tempos e naquelas deliciosas sensações. Em vão, continuava não sentindo mais nada parecido com aquilo. No entanto, de repente, surpresa! Na andança de hoje foi diferente, aconteceu! Aconteceu diferente, mas aconteceu. Foi tudo muito rápido, uma sonolência, um arrepio, um calor intenso, uma luz refrescante, apaziguando coração, corpo, alma e espírito; eu deslizando, levitando, numa gigantesca avalanche de luzes, cores, energias e sensações; céus, terras, matas e águas se integrando a mim, ou eu nisso tudo. De repente tudo parou, tempo e espaço suspensos, a sensação terminou; um leve zumbido nos ouvidos, uma suave groguera na cabeça, uma extasiante paz no coração e na alma, e eu continuei caminhando. Mas, tudo havia mudado: o chão em que eu andava, o ar que eu respirava, o céu, as águas e as matas que eu via, já não eram mais os mesmos de segundos atrás.
Por um momento, por um segundo, por um pequeno e crucial instante, enquanto continuava lentamente caminhado pelas trilhas daquele cenário maluco, desviei a atenção da paisagem e do ambiente que me cercavam e olhei para mim mesmo, para o próprio corpo. Desconcertante! Chocante! Assombroso! Limiar do pânico! Quase terror! – mas, antes de prosseguir, é preciso que eu esclareça: até onde me reconheço (ou reconhecia!) como ser humano, sou baixinho, fracote, meio magricela, branquelo, quase transparente (de peles e cabelos). Mas o que vi, estarrecido, (repito aqui, novamente, os cinco adjetivos de impacto ditos anteriormente), foi uma pele morena, quase vermelha, grossa, destituída de pêlos, mãos e pés enormes, braços e pernas longos e fortes, peito largo, barriga nenhuma, corpo desnudo, saradasso, com somente um pequeno trapo, parecendo feito de couro, amarrado na cintura, cobrindo e protegendo apenas as sensíveis partes medianas do corpo (frente e verso).
Passado o grande susto inicial, atônita e desesperadamente senti uma necessidade urgente de ver o meu rosto, a minha cara, e o susto continuou, ou, pior, se acentuou, se completou. Procurei um pequeno remanso a beira dágua (em tempo: nunca tinha visto antes aquela água tão límpida, transparente e saudável) e me debrucei na margem para ver (que nem Narciso fez, mas sem a menor intenção e pretensão deste). Rosto quadrado, olhos grandes e escuros, nariz largo e achatado, boca idem, cabelos negros, lisos, nos ombros, brilhando ao sol, foi tudo o que eu vi no espelho dágua, levemente ondulante e trêmulo. Mas, por mais estranho e doido que pareça, sabia que era eu, que era eu quem estava ali, um outro eu, eu em outro corpo, um outro corpo de eu, ou qualquer coisa assim. Mas, sabia que era eu!
Foi precisamente quando me erguia da beira dágua, onde estava debruçado vendo o reflexo da minha cara pálida de susto, que comecei a ouvir ao longe um canto! Um ainda quase inaudível e abafado canto! Uma cantoria! Gente cantando! Fui caminhando na direção dos sons. Eles cantavam alguma coisa como “ana..... uva”. Chegando mais perto: “ana... no... na... uva”, ritmado, ao som de batidas de tambores. Aproximando-me mais, pouco depois de uma pequena elevação divisei logo abaixo uma pequena clareira na mata: circular; pouco mais de 50 metros de diâmetro; em terra batida; no contorno, enlaçando a praça central, cerca de doze pequenas tendas, também redondas, feitas de pau e palha (longas folhas de palmáceas); no centro exato da praça, uma espécie de totem de madeira, com cerca de cinco metros de altura por um de diâmetro; no topo, um capitel parecido com uma carranca; em volta do totem, em círculo, um grupo com cerca de 50 pessoas, caminhando, dançando e cantando (alguns com uma espécie de tambor, outros não); parecia um tipo de festival, um festim, ou um ritual religioso.
Já estava há poucos metros daquilo e podia ouvir mais claramente: “ana... nona... ca... uva” / “ana... nonaca... uva”. Agora estava tão próximo que eles já podiam me ver, assim como eu a eles. Não me estranharam nem um pouco, era como se eu estivesse chegando de um lugar qualquer para participar da festa. Mais estranho é que nem eu os estranhei! Afinal, pareciam-se muito comigo e eu com eles, eu era um deles! (pelo menos esse eu que ali estava, de pé, parado, paralizado, embasbacado, com um sorriso mais deslavado, eternizado na boca aberta embobada de baba). Com um pé na entrada do lugar, ouvia agora nitidamente: “ana... no... na... ca... uva” / “a-na-no-na-ca-nu-va”. Era isso o que eles cantavam, acompanhando as batidas dos tambores, em ritmo bem compassado e lento, acentuando e nasalizando fortemente cada vogal do esquisito vocábulo, ou seja lá o que for isso: “á...nhá...nhô...nhá...cá...nhú...vá” / “á...nhá...nhô...nhá...cá...nhú...vá” / “á...nhá...nhô...nhá...cá...nhú...vá” ...
Última estranheza: meus ouvidos, minha mente e minha alma não estranharam nem um pouquinho aquilo que eles estavam cantando e, compreendendo perfeitamente a língua, a sintaxe, o significado, o valor, e tudo o mais, daquela bela e sonora palavra, entrei na roda cantando também: anhanhonhacanhuva / anhanhonhacanhuva / anhanhonhacanhuva / (*) ... (enquanto dançava e cantava, não sei porque, me veio à cabeça aqueles versos interessantes, sugestivos e emblemáticos do Êrro de Português, do Oswald de Andrade: “quando o português chegou / debaixo duma bruta chuva / vestiu o índio / que pena! / fosse uma manhã de sol / o índio teria despido o português”).

(*) Anhanhonhacanhuva, expressão em Tupi, dos índios Goitacás, da América do Sul, Brasil – que significa, em português, “água parada que some no buraco da terra” –, é o antigo nome indígena da localidade, em Minas Gerais, onde hoje reside o autor desse conto. Atualmente essa localidade atende pelos nomes Fidalgo e Quinta do Sumidouro (distritos de Pedro Leopoldo, MG), onde situa-se a Lagoa do Sumidouro (a dita Anhanhonhacanhuva), local sagrado dos citados índios e referencial geográfico central e principal do recém criado Parque Estadual do Sumidouro.


Robert Silvercore

PS: Esse conto foi enviado para o Concurso Literario da Fundacao Cultural de Ituiutaba - MG, de 2009.