domingo, 10 de maio de 2015

Todos os tons de verde escuro


Todos os tons de verde escuro

Caminhava as caminhadas que costumava caminhar e enquanto caminhava procurava caminhar pelos caminhos mais fáceis, mais planos, mais regulares, para que seus pés e suas pernas pudessem ir caminhando por conta própria, livremente, no “piloto automático”, poupando seus olhos e seu cérebro de ter que ficar, obrigatória e constantemente, olhando pro chão por onde caminhava, e para evitar possíveis trancos, quedas e solavancos em buracos, valetas e barrancos, muito comuns nos caminhos por onde caminhava.
E ele, ainda antes, sempre discursava em voz alta para si mesmo, enquanto calçava os tênis de caminhada:
– Mas que diabo!
– Olhos, cérebro, mente e espírito não tem que ficar preocupados com o chão, não deveriam ter esta baixa, rasteira e subalterna obrigação.
– Isto é função das partes de baixo, das pernas e dos pés. Os olhos e a alma precisam estar livres, desimpedidos, desobrigados dessas mundanas atenções, para poder olhar pra frente e pra cima.
Assim, ele caminhava.
E tinha um prazer muito particular e peculiar em olhar e contemplar as árvores, principalmente as mais altas, copadas, encorpadas e enflorestadas, as que formavam aquelas massas verdes compactas, fechadas; e ir distinguindo e apreciando as suas diversas tonalidades de verde, principalmente as mais escuras. É que os verdes mais claros são mais superficiais, mais iluminados, menos escondidos. Já os verdes mais escuros são mais profundos, mais escondidos, mais misteriosos. Daí, não se sabe bem porque, sua maior atração e fixação pelas folhagens verde-escuras.
Gostava especialmente de ficar absorvendo, saboreando e tentando decifrar as mensagens subjacentes, os códigos secretos, os sussurros remotos, e mesmo os silêncios velados, próximos ou longínquos, que cada tom, cada nuança, cada diferente matiz, de todos os verdes das folhagens das árvores, estavam lhe transmitindo:
A folhagem mais superficial, da copa das árvores, do verde samambaia lacrimosa, aquele verde mais claro, luminoso, quase branco, brilhante, lembrava o mar, as grandes e retas praias desertas e as pequenas ilhas oceânicas num dia de céu e sol límpidos, translúcidos, radiantes, quando ele enfiava a cabeça dentro d’água e olhava pra cima só pra ficar curtindo todo aquele azul borbulhante dançando na superfície da água.
O verde menos claro, verde médio, ainda não muito escuro, o verde limão galego verde, entre a copa e miolo das árvores, deixava passar e projetava na mente e na alma todas as estrelas, cometas e bólidos metálicos cadentes de um fim de tarde com lua minguante acima dez graus no horizonte de um céu amarelo-laranja avermelhando constantemente recortado pelos rastros de vapor esbranquiçados das espaçonaves identificáveis.
Uma grande e fantástica festa no interior, numa fazendinha remota nos sertões, lá nos cafundós onde Judas perdeu suas botas, aonde só se chega por estradinhas esburacadas e poeirentas, festa daquelas que duram três dias e três noites ao luar de nove graus da madrugada. E o que o chamou pra festa foi aquele verde mais chegado ao verde propriamente dito, o verde verde, o verde grama recém cortada, das folhas mais chegadas aos ramos e troncos principais.
Junto aos troncos e galhos mais grossos, um verde um pouco mais escuro, o verde folha de azaléia no outono, deixava sua boca e garganta secas, seus olhos embaçados de fumaça e sua cabeça zonza de lembrar tanta desgraça: da desolação das floretas devastadas, de toda a solidão das matas degoladas, de todas as árvores por séculos assassinadas. E o que sobrava era só a sensação triste, nostálgica e inconsolável de estar vagando num imenso deserto de areia, tateando às cegas as paredes de pedra de um gigantesco muro medieval em ruínas.
E bem entre os troncos principais, nas partes mais profundas e pouco iluminadas das folhagens, ele encontrava o verde mais escuro, o verde casca de abacate maduro, o verde negro das densas e indevassáveis florestas tropicais com seus insondáveis mistérios e inescrutáveis magias. Era onde ele confabulava com todos os mágicos habitantes das suas fábulas. Era onde procurava seus gnomos, seus duendes, suas princesas distantes, suas rainhas inacessíveis, suas magas enfeitiçadas, suas bruxas descabeladas e suas fadas amadas.
Enquanto viajava os olhos de uma tonalidade para outra, a cabeça mantinha um pensamento constante como pano de fundo, tabula rasa, fundamento teórico e prático, lei geral da ótica e da luminotécnica, de tudo aquilo:
– Bendito Sol! Abençoadas sejam as suas luzes, as suas sombras e as nossas variâncias orbitais em torno dele!
– Não fosse isso, as cores seriam todas invariáveis, sem tonalidades nem graduações. Seriam apenas cores de uma cor só. O amarelo seria somente amarelo, o verde só verde, o azul apenas azul, teríamos somente um vermelho, um marrom, um rosa, um...
Um belo dia, chegou da caminhada, parou na varanda da casa, e falou consigo mesmo, como era de costume, desta vez em voz baixa:
– Puta merda! Já é quase inverno, mas eu já tô com a camisa toda molhada de suor. Isso é muito bom, porque dizem que exercício físico só é bom, pra valer, se a gente suar a camisa.
Trocou de camisa, deitou numa rede, respirou fundo e repousou os olhos em todas as árvores em volta. Mirou a admirou os recessos de folhagens mais escuros, negros, quase totalmente pretos, das árvores em frente.
Vislumbrou uma espécie de vórtice, tipo uma singularidade espaço-temporal, um buraco de minhoca cósmico, um buraco negro, em que os três pontos mais negros dos setores mais escuros das árvores formavam um estranho, enigmático e quase irreal triangulo exatamente eqüilátero cuja linha central, paralela à da base, se alinhava perfeita e perpendicularmente com a linha dos seus olhos.
Mas aquilo não era uma simples linha reta, parada, estática. Havia uma discreta vibração, uma ondulação, em freqüência bastante baixa e suave, como uma espécie de modulador e transmissor de ondas eletromagnéticas, de luz ou outra radiação qualquer – mas, talvez fosse apenas o efeito da movimentação das folhas ao sabor dos ventos.
E a mensagem que emanava desse espectro de onda de folhas farfalhantes e falantes era a mais instigante, indecifrável, provocante, sedutora e irresistível que ele jamais tinha recebido até então. Parecia um portal, uma porta, atraindo, chamando, reclamando, suplicando ser inapelável e imediatamente aberta. Seus olhos, sua mente e seu espírito entraram em total e completa harmonia ressonante e em acoplamento de fase perfeito, integral, com a freqüência de onda daquele vórtice.
Fechou os olhos e entrou.

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