Vôo Cego
Pequena crônica de uma grande amizade (*)
Conheci os dois por volta de 1968 quando ainda éramos garotos, estudantes, em torno dos nossos primeiros quinze anos, na Escola Técnica (atual CEFET-MG) da Nova Suíça, em BH. Portanto, eles são amigos de longa data, cerca de 40 anos, e hoje já são dois quase respeitáveis senhores sexagenários. Estudaram, mataram aula, gandaiaram, se revoltaram, se perderam, se embebedaram e se encontraram(?) na vida estudantil, juntos, até se formarem em engenharia, no IPUC (atual PUC-MG), um em 78 e outro em 79. Depois, casaram, constituíram famílias, mudaram da Floresta, onde nasceram, para outros bairros, e se tornaram até compadres: o primeiro é padrinho da caçula do segundo e o segundo é padrinho de casamento do primeiro.
Quem é o primeiro e quem é o segundo? Só por questão de ordem alfabética e cronológica: Roberto Corrêa (1952) e Rubem Faria (1954), ou, simplesmente, Roberto e Rubinho, como são conhecidos social, política e familiarmente até hoje – apesar do carinhoso sufixo diminutivo inho ter sido aplicado, aparentemente, de forma trocada (pelo menos no que diz respeito à estatura e ao porte dos dois), essa discrepância foi corrigida recentemente pela família do primeiro, que resolveu passar a chamá-lo, não se sabe bem porque, de Robertinho. A propósito e em tempo: até as suas primeiras esposas têm nomes parecidos: Maira e Mara, respectiva e respeitosamente.
O Roberto gostava, e ainda gosta, de Beatles, Led Zeppelin, Gênesis, Pink Floyd, Mutantes, Chico e Caetano. O Rubinho curtia mais era Roberto e Erasmo Carlos, Jerry Adriani, Golden Boys, Wanderléia, Charles Azinavour e Pepino de Capri (mais tarde êle apreendeu Beatles com o amigo). O primeiro sempre andava de forma mais desleixada, quase esfarrapada, inclusive as roupas, à moda hippie. O segundo, com calças e camisas sempre impecavelmente muito bem passadas, um dandy – tinha verdadeiro horror a calças jeans furadas ou remendadas. Um lia García Márquez, Aldous Huxley e Leon Eliachar, o outro, Nelson Rodrigues, Milan Kundera e José de Alencar. Um tomava Guaraná, o outro só Coca-Cola. Um gostava do Pasquim, outro do Estado de Minas / Caderno Esportivo. Enquanto um ia pro cinema, o outro corria pro futebol – vale registrar que certa vez, nos anos 1970, eles tentaram participar da criação e montagem de um grupo de teatro(!) (o Zangui-Zarra, ou uma zorra de nome assim!), junto com outros amigos; mas, é claro, isso não deu certo! (houve até repressão político-policial!) Seria uma concordância de interesses muito forte! Não podia dar certo!
Como é que personalidades tão contrárias, opostas, com desejos, perspectivas e expectativas tão diferentes, puderam criar e manter uma amizade por tanto tempo?! Vai ver é aquela mesma velha história: os opostos se atraem, se complementam, simplesmente porque precisam se completar.
E eles costumam ficar meses, até anos, sem se ver, sem nem mesmo conversar por telefone. Mas, encontram-se e conversam até hoje, ainda que bienalmente, e, quando isso acontece, comunicam-se e se tratam como se normalmente viessem se encontrando todos os dias: a introdução da conversa sempre é seu fedaputa, pra lá, seu sacana, pra cá, seu merda, seu porra-louca e por ai vai...
Eu poderia contar muitas histórias interessantes vividas por esses dois sujeitos, que certamente renderiam várias crônicas, tais como: os campings & happenings no Parque do Rio Doce, na Serra do Cipó e em Lagoa da Prata; as viagens de férias pra Guarapari e Marataízes; as barricadas humanas nas entradas da Escola Técnica, em 1968, contra a invasão da escola pelo exército; as panfletagens antiditadura na avenida, nesse mesmo interminável ano; os bailes e festas, da Floresta até o Bonfim; as noites de sábado no Caniço (o point florestino da época); as viagens carnavalescas a Ouro Preto, Viçosa e redondezas; as noitadas de bebedeira nos butecos de Santa Tereza; as primeiras namoradas; os primeiros casos de iniciação sexual... (melhor parar por aqui)...
Mas, uma das melhores histórias, uma das mais interessantes, arrepiantes e hilariantes, até mesmo meio apavorante e terrificante, ainda que bastante edificante e gratificante, é essa aqui, que intitulei de Vôo Cego.
Foi lá pelos idos de 1976, quando os dois ainda eram totalmente solteiros e, conseqüentemente, completamente doidos, inconseqüentes e irresponsáveis. Conheceram um novo colega de escola, o Roberto Não-sei-mais-de-que (talvez seja Carneiro, Cordeiro, ou bicho assim) que era brevetado, isto é, tinha brevê de piloto de avião, pelo menos de Teco-Teco (ou só restrito a isso mesmo!), o qual nem por isso era menos maluco e irresponsável, muito pelo contrário!
Um certo dia, provavelmente depois de uma ácida, sulfúrica e tóxica aula de química, o Xará (como era chamado pelo Roberto) ou “Comandante” (como foi codinomeado pelo Rubinho) – alias, foi êle mesmo quem me contou esse caso – os convidou pra dar um passeio, uma voltinha, de avião. Eles toparam!!! E num belo sábado à tarde, com um maravilhoso “céu de brigadeiro”, lá foram eles pro aeroclube do Carlos Prates. Alugaram um monomotor Cherokee, de quatro assentos, piloto mais três, para um aeroturismo de uma hora sobre a cidade. Os dois Robertos, o piloto e o pretenso e falso co-piloto, foram nos bancos da frente, e o Rubinho foi sozinho no de atrás. Levantaram vôo do Carlos Prates e seguiram rumo leste: Prado, Barro Preto, Centro, Savassi, curvaram pro norte: Sion, Serra, São Lucas, Santa Efigênia, viraram pro oeste: Santa Tereza, Floresta, Horto, Sagrada Família, mais pro norte: Planalto, São Gabriel, Jaraguá, Pampulha, e retornaram – por outros caminhos que não lembram mais ou que já foram apagados da memória devido ao susto e pavor ocorrido na volta.
A certa altura (literalmente, que altura!) dessa volta, o “Comandante” resolveu perguntar se um dos dois caros amigos gostaria de pilotar o avião, um pouquinho só!?... Ao que o irresponsável, deslumbrado e animadinho Robertinho disse alegremente Sim, eu quero! Enquanto o preocupado, apavorado e arrependido Rubinho, suando frio e às bicas, disse peremptoriamente Não, de jeito nenhum! Sucedeu que o também totalmente alucinado “Comandante” deu mais ouvido ao sim do seu xará e, por alguns poucos segundos, talvez um minuto e pouco – para desespero total do Rubinho –, o manche (ou era volante, mesmo?!) esteve nas mãos do Roberto. E o Xará-comandante disse que nesse lapso de tempo não aconteceu nada de mais, apenas um leve tremor nas asas e na cabine, muito provavelmente provocados pela própria tremedeira do passageiro no banco de trás.
Aterrisaram sem problemas – logicamente após esperarem alguns bons minutos (pro Rubinho, uma eternidade!) até que não houvesse nenhum outro Teco-Teco levantando ou pousando. Tudo sob o controle dos bons e bem treinados olhos do “Comandante”, visto que esse era o único meio de comunicação (olhometro!), tanto ar-terra quanto ar-ar! Rádio, radar ou coisa assim?! Nem pensar! Não tinha pára-quedas e nem ao menos cinto de segurança!
Tempos depois, o Robertinho amigo do Rubinho me disse que na cabeça dele ainda há uma infame, insólita e tenebrosa pergunta que, desde aquele episodio, não quer calar: Se por desgraçada ventura aquele avião caísse, o que será que o Rubem faria enquanto o Roberto corria?!
Pois é, a vida costuma ser assim mesmo: às vezes voamos cegamente levados pelas mãos dos outros, sem termos a menor idéia do que estamos fazendo ou do que está acontecendo. Mas, o que importa mesmo é podermos chegar, bem e ilesos, em terra firme e segura, aprendendo e apreendendo o bom e o melhor daquilo que já passou, já voou para tempos distantes.
(*) Esse texto foi integralmente avaliado, aprovado e autorizado pelos dois amigos.
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