Aquecendo os tambores do Olodum
Gente muito boa o Marcelinho Fonseca, meu cunhado-amigo-irmão – pois é, dizem que existe ex-mulher e até ex-sogra, mas que, assim como é impossível a existência de ex-filhos ou ex-pais, também não existem ex-cunhados, e uma vez cunhado, cunhado é, ou está, literalmente; e o Marcelinho, mais que um cunhado, é um cunhado-amigo-irmão.
Quando o Marcelinho ainda morava em Salvador, eu viajava muito a trabalho por esse Brasil afora, principalmente pelo Nordeste, e costumava adotar Salvador como minha “base” para essas viagens.
Tão logo eu descia no aeroporto dois de julho, ligava meu celular, chamava o Marcelinho e, seca e invariavelmente, falava: “Tô aqui, cheguei.” E ele, depois de responder como seu costumeiro, eloqüente e caloroso “Diga aí, meu irmão! Que bom que você está aqui...”, se colocava total, absoluta, inteira e exclusivamente à minha disposição, pra qualquer coisa, especialmente pra sair pela cidade à noite:
Cidade baixa, pelourinho, cidade alta, elevador lacerda, baixa do sapateiro, cidade velha, cantina da dona celina, largo de são..., pituba, amaralina, farol da barra, placafor, rio vermelho, campo santo, campo grande, alberto roberto, Itapoan, piatã, boca do rio, estrada do côco, camaçari, travessa de são..., liceu de artes e oficio, Itaparica, camapuã, praia da barra, praia do forte, Interlagos, sergipe, alagoas... e por aí vai (não necessariamente nesta ordem), ou melhor, por aí íamos.
Numa dessas vezes, eu disse a ele que gostaria muito de conhecer o Olodum... Pô, massa! Tudo bem – disse ele –, só se for agora, hoje à noite, vamos lá, playboy! E lá fomos nós...
Nesta época o Olodum ainda realizava seus ensaios e apresentações públicas, semanais, no seu terreiro original, o Terreiro do Olodum, nos fundos de um casarão antigo no Pelourinho, toda terça-feira à noite.
Chegamos e entramos na hora em que o terreiro abriu, mais ou menos às 18h, e saímos e fomos embora só na hora em que o terreiro fechou, mais ou menos às 06h da manhã da quarta-feira.
Aproximadamente doze horas, metade de um dia, uma noite inteira de vigília, ao som dos incríveis e fantásticos tambores do Olodum.
Quando chegamos, estávamos praticamente somente nós dois ali, de pé, bebendo cerveja adoidado e fumando (nem tanto), bem de frente ao bloco e aos tambores. Mas o povo foi chegando, gente foi entrando e se amontoando, e de repente, lá pras tantas, já era um mar de gente, tomando conta de todo o terreiro, que nem era tão grande assim, mais ou menos só uns quatrocentos metros quadrados de cimento bruto, acomodando cerca de mil e duzentas pessoas maleáveis. E nós dois ali, firmes e irredutíveis, de frente para os tambores.
E o batuque foi aumentando, as batidas subindo, o ritmo crescendo, acelerando e desacelerando, o sangue fervendo, os nervos eletrificando, tambores, surdos, e taróis se altercando, se alterando, se intercalando, se sobrepondo, o tórax vibrando como caixa de ressonância de tudo aquilo, o coração disparando, alma e corpo se purificando e o espírito se elevando. E nós dois ali, bêbados e trôpegos, perante os tambores.
Lá pras altas horas da madrugada aquela turba já não era apenas um mar de gente apreciando um belíssimo bloco de tambores em execução, era muito mais que isso, era um corpo só, uma coisa só dançando e se movendo, alucinada e alucinante, num só ritmo, no mesmo padrão, na mesma cadência dos sons dos tambores, pra frente e pra trás, pros lados, pra cima e pra baixo, todos harmoniosamente juntos, como uma onda humana, indo e voltando incessantemente, em êxtase total – e olha que, pelo que me afirmaram, só rolou cerveja mesmo, nada de outros baratos mais fortes; o que, a julgar pelo porte físico dos negões da segurança do local, era plenamente crível.
Parecia uma espécie de celebração, um festival, um ritual de iniciação ou de louvação, daqueles que nos remetem ao nosso passado mais remoto, das tribos nômades, das cavernas, das origens da raça mesmo; porém, realçando, sobretudo, o seu lado mais belo, sublime e grandioso, o que só a musica é capaz de traduzir e transmitir.
Foi uma festa realmente incrível, magnífica, majestosa, uma maravilhosa, estonteante e inebriante variedade de ritmos e sons africanos, brasileiros, caribenhos, asiáticos, oceânicos, ocidentais e orientais, tudo junto... e nós dois continuamos ali, até o final, cambaleantes e irremovíveis, defronte aos tambores.
Mas, para mim, uma outra coisa bem interessante, colateral, aconteceu naquela noite: acontece que os couros de certos tambores precisavam ser aquecidos constantemente para que não se deformassem, ou seja, não podiam ficar muito moles, mas sempre bem retesados e firmes (ou é o inverso, sei lá, num lembro!) de forma a manter uma boa qualidade de som, e isso era propiciado por simples aquecimento!
Como isso era feito? Muito simples: o general da banda, ou o sujeito responsável pela manutenção do aquecimento tamboral, pegava um chumaço de jornal, botava fogo na ponta e passava próximo dos couros, em movimentos circulares uniformes (próximo o bastante pra não incendiar os tambores, é claro, mesmo porque isso o próprio som do Olodum já se encarregava de fazer).
Ocorreu que, como eu era um dos mais próximos aos tambores e estava fumando toda hora (vício desgraçado!), o tal sujeito mantenedor do calor vinha toda hora pegar meu isqueiro emprestado pra botar fogo no jornal pra esquentar os tambores, e foi essa ladainha a noite toda: ele estendendo o jornal, eu botando fogo, ele aquecendo os tambores...
E até hoje eu tenho esse isqueirinho guardado comigo (só não sei onde), só para um dia poder dizer pros meus netinhos: um dia, ou melhor, uma noite, esse isqueiro aqueceu os tambores do Olodum.
Numa outra certa vez – ou foi “incerta” vez? – nós saímos de Interlagos e pegamos a estrada do coco e desnorteamos rumo norte pra ir comprar peixe fresco pro almoço... (mas essa já é uma outra estória)
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