quarta-feira, 15 de abril de 2015

Os dois lados da montanha


Os dois lados da montanha

A minha cidade tem (ou tinha?!) uma grande montanha. Sempre vejo um lado da montanha, raramente vejo o outro lado da montanha. E, antes de todo o montante restante, é bom lembrar que uma boa, decente e geologicamente bem formada e assentada montanha sempre tem, no mínimo, dois lados, quando não três, cinco, dez...
E, desde que me conheço como bom mineiro observador de montanhas – principalmente de montanhas em movimento, montanhas andantes, montanhas decrescentes e minguantes –, repito, sempre tenho visto o meu lado da montanha e muito esporadicamente tenho olhado o outro lado, o lado dos outros que vivem do outro lado da montanha.
Mas, dias atrás, pela primeira vez, desde que conheço essa montanha, eu subi no topo, no cume, da montanha, e pude ver, admirar, ler, entender e interpretar, simultaneamente, os dois lados da montanhas!
É isso mesmo, dois lados, porque a minha montanha só tem mesmo dois lados, porque ela já foi tão explorada, escavada e devastada do lado de lá que já perdeu seus lados laterais. E do lado de cá ela mais parece um gigantesco outdoor como, o que é pior, uma propaganda enganosa de montanha, um espectro, um fantasma de montanha, virado pro meu lado, o lado da cidade grande, enganando a cidade e todo mundo da cidade que olha pra montanha.
Pra quem ainda não sacou qual é a minha montanha, qual? Muito fácil: ela é a principal da minha cidade natal, é aquela mesma do antigo del’rey curral.
Mas, depois de tergiversar pelos talvegues e talvezes, pelas costas e encostas e pelas redondezas e profundezas da montanha, voltemos à montanha propriamente dita, aos seus dois únicos lados, ao seu cume, e ao tópico principal, de modo a poder ir escalando o assunto até alcançar o seu topo, em verdadeiro e quase literal alpinismo com palavras.
Como eu dizia, era a primeira vez que via, concomitantemente, os dois lados da montanha, o lado de lá e o lado de cá. E o quê que uma visão inteira, integral, do conjunto, do todo, não faz!
Numa só seqüência, como o que se vê quando se contempla um belo horizonte montanhoso, lentamente, detidamente, mineiramente, de um lado para o outro, o que eu vi foi o seguinte:

do lado de lá da montanha,
a montanha é dinamitada, detonada, pra formar grandes montes de pedrinhas de minério de ferro;
as pedrinhas são carregadas por escavadeiras ou pás carregadeiras;
as escavadeiras e pás carregadeiras descarregam as pedrinhas nos caminhões ou nas rolantes esteiras;
os caminhões e as esteiras rolantes despejam as pedrinhas nos vagões de carga de um imenso trem de mais de duzentos vagões (aliás, esse trem de ferro é o único que mineiros vêem nos últimos cinqüenta anos!);
o trem de ferro de duzentos vagões viaja cerca de quinhentos quilômetros até chegar a um porto no litoral que Minas não tem;
neste porto marítimo mais próximo (*), no Espírito Santo – nosso querido Estado de férias e praia –, o trem entrega sua carga de pedrinhas pra grandes navios cargueiros graneleiros;
os grandes navios cargueiros minereilos navegam milhares de milhas náuticas até outros portos na Ásia, na Europa e até mesmo na América;
nestes portos, os navios negreiros, ops, digo minerioleiros, despejam as pedrinhas em outros trens estrangeiros;
os trens estrangeiros transportam as pedrinhas até grandes usinas siderúrgicas estrangeiras;
nestas usinas siderúrgicas as pedrinhas são cirurgicamente usinadas e transformadas em aço;
lá mesmo o aço é laminado e transformado em placas de todo e qualquer tipo, qualidade, espessura e envergadura.
as placas de aço são colocadas em outros trens ou caminhões;
estes trens e caminhões transportam as placas de aço até os portos estrangeiros e as entregam pra outros navios cargueiros;
os navios cargueiros de aço plaqueiros, ou seja os que transportam as placas de aço do estrangeiro, levam as placas de aço pra outros portos estrangeiros;
nestes outros portos elas são carregadas em outros trens ou caminhões os quais as transportam até às fábricas de coisas metálicas em geral, inclusive de auto-peças tais como chassis, motores e latarias de automóveis;
estas fábricas de coisas metálicas despacham (just in time) suas auto-peças, via trem, avião, navio ou caminhão, pras montadoras de veículos automotores ao redor do mundo (inclusive para aquela logo ali embaixo, a italiana, que eu consigo ver daqui do topo dessa montanha);
nas montadoras de veículos automotivos (mesmo sem motivos pra tantos autos) as auto-peças são montadas de forma a formar os tais veículos automotores, mais popularmente conhecidos como carros;
os carros são enviados pras estradas, pras ruas, pros campos e pras cidades;
e os carros (inclusive o meu, que eu vejo daqui, estacionado ali ao pé dessa montanha) vêm rodar, roncar, buzinar, poluir, atropelar e infernizar a vida da gente, bem aqui,
do lado de cá da montanha.

Maniqueistamente maluco e maquinalmente maquiavélico isso, né?!
As pedrinhas do lado de lá da montanha foram atiradas pro lado de cá da montanha e caíram aqui sob a forma de carros!
Saíram do lado de lá da montanha, rolaram, viajaram, por meio mundo, e vieram parar do lado de cá da montanha como veículos sob rodas!
Eu preferia que elas jamais tivessem que sair do lado de lá pra vir pro lado de cá da montanha. Acho que a montanha, e o planeta, também.
E a mixaria vergonhosa, escandalosa, escabrosa de royalties sobre o minério de ferro que a gente ganha! Nem mesmo toda a “maravilhosa” revisão fiscal – da qual, há tempos, não se vê sinal – que se promete há séculos, desde os tempos dos ingleses do “uai”, compensaria toda essa gigantesca, usurpadora e detonadora movimentação de montanhas de pedrinhas!
Toda moeda tem dois lados, certo? Errado! Pois os dois lados da minha montanha nos apresentam uma incrível, impossível, surreal, predatória e matreira moeda de um lado só! Uma que só tem o lado “deles”!

(*) Porto de Tubarão, em Vitória / Espírito Santo. É considerado o maior terminal de exportação de minério de ferro do mundo! Nome bastante apropriado porque é onde os insaciáveis tubarões da indústria siderúrgica mundial devoram o nosso minério de ferro!

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