Alguém irremediavelmente viciado em escritas e estrelas, projetando palavras interiores em espaços exteriores.
sexta-feira, 10 de abril de 2015
A última vez que vi o Cristo
A última vez que vi o Cristo
As obscuras e obstruidoras fôrmas quase em forma de cruz de madeirite para armação das colunas e vigas do sexto andar tinham acabado de ser erguidas e fixadas pelos operários da obra em frente ao prédio onde todo dia pro meu calvário eu subia, mais ou menos tal e qual quando os soldados romanos ergueram aquela tenebrosa e amaldiçoada cruz de madeira maciça no cume do maciço do Gólgota em Jerusalém por volta de dois mil anos atrás.
Mas, eu estava no Rio de Janeiro, meio por revolta, cerca de dois mil anos depois daquela famigerada e ignominiosa crucificação, no fim do meu trabalhista fogo em pleno Botafogo (que eu não botei nem ajudei a botar), bem no começo da rua General Polidoro, do lado esquerdo de quem sobe da praia em direção ao cemitério São João Batista (aquele mesmo, que batizou Jesus), no terceiro andar de um prédio de aproximadamente três andares, numa sala de frente pra rua, sentado à uma mesa próxima à janela, e com vista privilegiada de meio Cristo me olhando e me vigiando inteiro de frente – só meio Cristo porque eu só o via pela metade, da cintura pra cima.
Um flerte sublime, divino, arrebatador: o Cristo olhando pra mim, eu olhando pro Cristo. E apenas cerca de três quilômetros, em linha e visada direta, sem obstáculos nem intercessores, nos separavam, permitindo que em dias de céu celestialmente limpo, imaculado e puro eu pudesse ser agraciado, abençoado, por uma visão cristiana impecavelmente transparente, radiante, luminosa.
Mas esse contato visual celestial durou apenas uns seis meses. Pois é, esperamos, eu e Ele, dois mil anos por esses magníficos momentos de vista direta, cara a cara, olho no olho, sem intermediários de qualquer estirpe ou hierarquia, nem anjos ou arcanjos, nem padres, bispos ou papas, nem santos ou profetas, e o Pai dEle só nos concedeu essa graça por apenas uns poucos 180 dias – o que não chega nem a 1% do tempo de expectativa atual de vida de qualquer filho dEle nesse planeta.
Com o perdão da má, injuriosa e profana palavra, foi uma grande sacanagem, né?! Parece até que eles só estavam esperando eu sentar àquela mesa defronte aquela janela tão graciosamente panorâmica para começar a construir aquele maldito prédio bem em frente.
O que aconteceu naqueles memoráveis, misteriosos e insondáveis dias foi muito estranho, enigmático e premonitório: pelo ritmo da construção e seu cronograma da obra, que eu secretamente já havia traçado, era possível prever, semanas antes, o momento, o dia, exato em que tudo aconteceria, em que a grande e majestosa estátua do Cristo Redentor seria definitiva, inexorável e concretamente eclipsada por aquele mísero, insignificante e pecaminoso prédio plebeu – momento aquele que representava, para mim, sob o ponto de vista sentimental, emocional e espiritual, algo muito próximo da comoção geral que dominou os gentios quando ocorreu aquele eclipse total que se abateu sobre o Calvário no instante do último suspiro de Cristo.
Parei tudo que estava fazendo, minimizei o word, fechei todas as janelas, maximizei a atenção somente na janela em frente e fiquei só olhando pra cabeça do Cristo que ia sumindo atrás da última desgraçada placa de madeirite; e fiquei só pensando um pensamento fixo, obsessivo, maluco, recorrente e irremediável: Num segundo atrás Ele estava ali, agora já não o vejo mais! Nunca mais! Daqui dessa mesa, daqui dessa janela, daqui desse ponto desse mundo de deus, nunca mais!
Pois assim foi, dou fé que aconteceu e está agora registrado nas minhas escrituras: numa hora qualquer de uma ensolarada e calorenta tarde botafoguense (também alvi-negro que nem o Galo que sempre cantava nos momentos cruciais e crucificais da vida de Cristo!), num dia qualquer de Abril do ano 2000 dC (depois de Cristo, claro), aqueles inocentes, maltrapilhos e mal pagos operários de boa alma, bom coração e bom serviço ergueram os madeirames do sexto andar pregando-os com cravos de aço inoxidável à carne ainda mole e quente de concreto do prédio em frente – Pai, perdoai! eles não sabiam o quê faziam! –, e lá se foi a minha vista do Cristo! Mataram o meu Cristo!
(by Brumbe © 2015, from his “The last time I saw the Christ”)
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