domingo, 1 de dezembro de 2013

O Sorriso do Corvo


O SORRISO DO CORVO
da série Ensaios Húngaros (Hungarian Essays)

Ele estava lendo um belo, longo, quente, saboroso e muito interessante livro (927 páginas, letras em arabic typesetting, tipo 8, capa dura, papel pólen soft reciclado). Era um desses que prendem tanto a atenção da gente que a gente não consegue se livrar facilmente deles antes do fim; antes que o fim, enfim, chegue e a história acabe, ou que nós mesmos nos acabemos de tanto ler no meio da história, antes do fim. Ele não estava de pé na porta, e muito menos com o pé na porta, o que pouco importa. Já estava confortavelmente sentado com pés livres de botas, lendo e esperando pelo cozido que estava sendo cozido na cozinha, o qual provinha de uma gaiola, onde estivera anteriormente engaiolado antes de ser degolado.
E tal tipo de comida, se antes, em vida, estava presa numa gaiola, só poderia ser alguma espécie de pássaro. Um bom galináceo, uma pomba, uma codorna, uma perdiz – quem sabe, quem diz? E o bicho, dentro da panela, não tinha nenhum pé, muito menos dois ou quatro – o que era muito bom, pois êle detestava comer pés de aves, assim como jamais comia mamíferos alados – e, principal e exatamente, talvez por isso mesmo, a tal ave depenada (e de pé nada) lhe parecia muito boa.
Mas, como ele era muito desconfiado e sempre suspeitava de aves que êle próprio não havia caçado – o que era o caso daquela, que ganhara de presente, sabe-se lá de quem..., – ele retirou seu capuz, ou melhor, sua carapuça, e correndo feito uma mula, a trote, quase a galope, pegou um forte anzol seguro numa argola e, antes que a filósofa coruja crocitasse, foi pra beira do rio tentar pegar ao menos uma boa traíra (uma que jamais trairia seu paladar), para o caso de uma necessária, emergencial, e nem tanto eventual, mudança repentina de cardápio.
Mais tarde, horas depois, ele foi visto nas redondezas, como um doido e com um vago olhar fixo, vidrado, muito estranho, dando uma longa volta antes de voltar pra casa. É que, na verdade, ele estava muito contrariado e envergonhado por estar com as mãos vazias, de peixes e anzóis. Isso jamais houvera acontecido antes e ele não conseguia entender se os havia perdido, ou distraidamente deixado na beira do rio, no frigorífico, na feira-livre, ou em casa mesmo.
Tudo isso parecia ser absolutamente normal e lógico. Mas, por mais que parecesse, não era. Não, absoluta e absurdamente, não. As coisas não estavam se desenrolando tão natural e normalmente como pareciam, ou deveriam, estar. Muito pelo contrário, estavam se enrolando cada vez mais nas tramas da rede que ele mesmo tramou, e na qual totalmente se enroscou. Porque, ao invés de ir pescar legalmente com vara e anzol, ele preferiu utilizar meios ilícitos, que a lei não permite: rede, tarrafa e dinamite.
Além disso, tudo parecia suspeitamente semelhante a um daqueles tipos de assalto feitos por pessoas inescrupulosas, sarcásticas, zombeteiras e de muito mau humor, que poderiam ter entrado facilmente dentro do seu bunker-casa, que ainda não dispunha de nenhum telhado; visto que tal falta de cobertura (arquitetônica e policial) certamente poderia ter facilitado em muito o roubo.
Decorridos 17 anos e alguns meses, investigações preliminares, efetuadas conjuntamente por MP, PF, RF, CPI, DEOESPam-DF, CPMF, ISS, STJ, STF e 52ª. DP/sucursal CPCBN (todas elas, instituições húngaras, claro!), apresentam uma discreta tendência a favor (melhor seria dizer “contra”?) desta segunda hipótese.
E então, o corvo, prévio detentor privilegiado de tal informação, negra ave agourenta de um espécime que era uma espécie de alarme alado vivo, para todas as horas – ainda comendo uma suja raiz cheia de fuligem que ele pegara por ali –, como era amigo fiel e incondicional (talvez, menos na “condicional”) do nosso sub-repticiamente anônimo personagem central, tocou o berrante no meio da mata e, com um sorriso meio maroto, como se fosse um cachorro, soltou um alto latido denunciando a presença do suposto e lerdo larápio, que ainda tentava fugir pra se esconder no meio do matagal.

(i)moral da história: sorrisos corvenientes, isto é, convenientes e coniventes, são próprios de corvos sorridentes.

(by Brumbe, pursued by a crow in Budapest)
(from his “ood to oot rhyme serie”)

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