sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Matemática, Música e Poesia


Matemática, Música e Poesia.

“Ondas serão da mesma forma de onda se contiverem as mesmas harmônicas, se as relações das harmônicas correspondentes para suas respectivas fundamentais forem as mesmas, e se estas harmônicas estiverem igualmente espaçadas em relação às suas fundamentais. Expressas de outro modo, para duas ondas de mesma forma, as relações das grandezas de harmônicas correspondentes devem ser constantes, e, quando as fundamentais estão em fase, todas as harmônicas correspondentes das duas ondas também devem estar exatamente em fase.” (1)

“Um corpo elástico (por exemplo, uma corda de violão) é tirado do seu ponto de repouso AB e levado à posição AmB. Soltando-se então, a corda, ela procura, devido à sua elasticidade, voltar ao ponto de repouso AB. Mas, não consegue parar no mesmo ponto. Porém, devido à tensão que nela foi produzida, ela vai até a posição AnB, de onde volta à posição AmB. E, assim, esse ciclo (que forma ondas), é repetido sucessivamente, até que a corda, perdendo gradativamente a sua tensão inicial, volta a repousar na posição AB. Esse movimento completo de vai-e-vem (mn-nm) de um corpo elástico (que pode ser qualquer corda movimentando-se no espaço) se chama ‘vibração’.” (2)

Um músico, um maestro ou um técnico de som que leia o primeiro parágrafo pode muito bem pensar que está lendo um livro de Teoria da Música (Noções de Acústica) ou algo parecido, assim como um físico, um engenheiro ou um matemático que leia o segundo parágrafo também pode perfeitamente deduzir que está diante de um livro de Física Quântica (Teoria das Cordas), Engenharia Elétrica (Ondas Não-Senoidais) ou de Matemática Superior (Harmônicas e Sub-harmônicas).
Mas é exatamente, precisamente, o contrário!
O primeiro parágrafo é para físicos, engenheiros e matemáticos, e o segundo é para músicos, maestros e técnicos de som.
Poderiam ser trechos de um mesmo livro? Sim, poderiam muito bem ser! Poderiam até ser trechos de um outro livro, nem de matemática, nem de física, nem de música, mas de Teoria e Composição de Poesia!
É muito interessante observar como até o vocabulário e as expressões usados nestas três ciências – sim, porque todas as três são ciências de alto nível –, e mesmo os próprios conceitos e definições atribuídos a esses vocábulos, se misturam, se repetem, se reforçam: amplitude, freqüência, seqüências, métricas, harmonias, cadencias, fases, ciclos, ondas, cordas, vibração, ruído, distorção, movimento, arranjos, rimas, ritmos, quadras, períodos, ressonâncias, grave, agudo, séries, progressões, escalas, diametrias, simetrias, assimetrias, intensidade, probabilidade, relatividade, incerteza, leveza, beleza, ... só para citar alguns.
Quem disse que em Engenharia não existe Poesia?! Pois a vejo nela todo dia! Poesias, por sinal, bastantes engenhosas! Equações que são sonetos! Poemas que são alicerces! Rimas que são vigas, tijolos, colunas! Belas colunas gregas, romanas, etruscas, que sustentam templos onde se ouve a Música dos deuses!
Quando eu ouço música, costumo ver números dançantes. Quando estudo matemática, vejo rimas riquíssimas, perfeitas. Quando leio poesia, encontro melodias e harmonias.
Não consigo ver uma equação matemática sem imediatamente associá-la a uma bela pauta musical. Não consigo ler uma boa poesia sem que automaticamente procure todas as suas relações métricas e cadências sonoras. Não consigo ouvir uma música sem instantaneamente conectá-la ao gráfico de uma longa e harmoniosa função ou progressão matemática.
Por exemplo, a Equação Geral da Circunferência [Xe2 + Ye2 – 2Xc.X – 2Yc.Y + Xce2 + Yce2 = Re2] é pura poesia! É o poema de um círculo perfeito de raio R e centro em Xc,Yc. É também a geratriz de formas de ondas espaciais chamadas senoidais ou senóidicas, que também caracterizam as ondas sonoras. Ou seja, a equação da circunferência é uma equação musical!
Se um dia inventarem um software que seja capaz de ler, traduzir e “tocar” equações matemáticas (e desconfio que isso já existe ou vai ser criado em breve) veremos que elas, e principalmente as equações geométricas, produzem pura música celestial.
Nos gráficos das funções e progressões matemáticas vejo as ondas, as oscilações, as pulsações e as vibrações que movimentam o universo e a vida. E mesmo que em alguns momentos e períodos, elas se apresentem com prenúncios e premonições de morte (evoluções e tendências decrescentes ou negativas), nem por isso deixam de evocar música e poesia, ainda que sinistras e mórbidas.
Quando estudo Matemática, mesmo com o rádio desligado, ouço música, harmonias, sinfonias e acordes, sonantes, dissonantes, retumbantes.
Acho incrível, mágico, fantástico, como essas três coisas – Matemática, Música e Poesia – (que não por acaso estão entre as coisas que eu mais gosto vida, depois de amor e sexo, claro!), se relacionam, se misturam, se complementam, se unificam!
Na verdade, para mim, as três são uma coisa só. Uma palavra, é um número, é uma nota musical. Um número, é uma nota, é uma palavra. Uma nota, é uma palavra, é um número – inclusive, no nosso mundo digital, todas as três são, de fato, constantemente convertidas numa coisa só: números binários: 1100011100111100101011100...
Aliás, há décadas que os grandes cientistas do planeta, principalmente os astrônomos, astrofísicos, ufólogos e similares, dizem que, se existem outras civilizações inteligentes no universo, só há duas linguagens possíveis para que se estabeleça um eventual contato: a Matemática ou a Música, ou, claro, as duas juntas – e eu acrescento, por minha conta e risco, a Poesia que, de certa forma, é uma soma de matemática mais música.
E eles dizem isso por uma razão muito simples: o próprio universo, e tudo que há nele, se organiza, funciona, movimenta e vive segundo Leis Físicas e Matemáticas que, obviamente, serão de pleno conhecimento e domínio de qualquer civilização minimamente inteligente que tenha poder para se lançar aos espaços interplanetários – essa idéia, inclusive, já foi muito explorada no cinema sci-fi. Lembram da música do “Contatos Imediatos de 3º. Grau”, com suas notas musicais bem nítidas, ritmadas, cadenciadas, como números?
Desnecessário dizer (mas vou dizer) que a matemática e a música deles têm símbolos e códigos deles, assim como as nossas têm símbolos e códigos nossos, claro! Mas nada que um pouquinho de esforço intelectual não resolva, né?! Assim como nos conseguimos decifrar e entender os intricados hieróglifos egípcios e as malucas escritas chinesas, japonesas e orientais que, pensando bem, são coisas de outros mundos – Por falar nisso, como é que os orientais entenderam o nosso abecedário? Nós é que ensinamos ou foram eles que decifraram?
E foi pensando exatamente nisso, que os americanos da NASA colocaram dentro da Voyager I – a sonda espacial lançada na década de 1970, que agora está saindo dos limites do Sistema Solar e ganhando o espaço interestelar – um CD com mensagens da Terra, pra qualquer ET inteligente tentar decifrar. O que está gravado naquele CD?! Muita coisa, mas, principal e essencialmente, matemática, música e poesia, por exemplo: o Teorema de Pitágoras, as medidas do Homem de Vitruvius, a fórmula H2O, Sinfonias de Beethoven, Bach e outros, Rock’n’Roll (nada de Beatles ou Stones, só Led Zeppelin!), muita literatura e poesia falando da vida no planeta (só não me lembro dos autores), e também muita imagem digitalizada (pessoas, animais, cidades, etc).
O fato é que, seja quem for que coloque as mãos – ou os tentáculos ou as garras – naquele CD, se não conhecer matemática, música e poesia, não vai entender absolutamente nada, pode jogar fora!
O universo vai nos conhecer, mesmo que não estejamos mais aqui, através da Matemática, da Música e da Literatura, principalmente Poesia.
A propósito e ainda em tempo: se Deus realmente existe, como uma “entidade” ou “ser” único, conforme a maioria das religiões defende, podem ter certeza de que Ele é o nosso maior Matemático, Músico e Poeta!
Não é por acaso que a história da humanidade está cheia de exemplos de grandes homens e mulheres que foram, simultaneamente, bons músicos, bons poetas e bons em matemática.
Estude matemática, ouça música, leia poesia. Se possível, no mesmo espaço-tempo!

(1) Kerchner, Russel e Corcoran, George – Circuitos de Corrente Alternada – Porto Alegre – 1973. (págs. 229 e 230)
(2) Lacerda, Osvaldo – Teoria Elementar da Música – São Paulo – 1966. (pág. 139)

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Um pouco mais de Fernando Pessoa


Um pouco mais de FERNANDO PESSOA (*)

“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso; viver não é preciso’. Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar”. (FP)

SÚBITA MÃO DE ALGUM FANTASMA OCULTO

Súbita mão de algum fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto

Mas um terror antigo, que insepulto
Trago no coração, como de um trono
Desce e se afirma meu senhor e dono
Sem ordem, sem meneio e sem insulto.

E eu sinto a minha vida de repente
Presa por uma corda de Inconsciente
A qualquer mão noturna que me guia.

Sinto que sou ninguém salvo uma sombra
De um vulto que não vejo e que me assombra,
E em nada existo como a treva fria.

LEVE, BREVE, SUAVE

Leve, breve, suave,
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.
Escuto, e passou...
Parece que foi só porque escutei
Que parou.

Nunca, nunca, em nada,
Raie a madrugada,
Ou esplenda o dia, ou doire no declive,
Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gozar.

DORME SOBRE O MEU SEIO

Dorme sobre o meu seio,
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na ilusão de amar.

Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser.
O espaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.

Dorme sobre o meu seio,
Sem mágoa nem amor...
No teu olhar eu leio
O íntimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e gozo e dor.

QUALQUER MÚSICA...

Qualquer música, ah, qualquer,
Logo que me tire da alma
Esta incerteza que quer
Qualquer impossível calma!

Qualquer música – guitarra,
Viola, harmônio, realejo...
Um canto que se desgarra...
Um sonho em que nada vejo.

Qualquer coisa que não vida!
Jota, fado, a confusão
Da última dança vivida...
Que eu não sinta o coração!

TENHO DÓ DAS ESTRELAS

Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço.

Um cansaço de existir,
De ser.
Só de ser.
O ser triste brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim,
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão –
Qualquer coisa assim
Como um perdão?

DÁ A SURPRESA DE SER

Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

NÃO, NÃO DIGAS NADA!

Não, não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já.

É ouvi-lo melhor
Do que dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada, sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

LIBERDADE

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada,
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo, não tem pressa...

PRESSÁGIO

Vinham, louras, de preto
Ondeando até mim
Pelo jardim secreto
Na véspera do fim.

Nos olhos toucas tinham
Reflexos de um jardim
Que não o por onde vinham
Na véspera do fim.

Mas passam... Nunca me viram
E eu quanto sonhei afim
A essas que se partiram
Na véspera do fim.

EU

Sou louco e tenho por memória
Uma longínqua e infiel lembrança
De qualquer dita transitória
Que sonhei ter quando criança.

Depois, malograda trajetória
Do meu destino sem esperança,
Perdi, na névoa da noite inglória,
O saber e o ousar da aliança.

Só guardo como um anel pobre
Que a todo o herdado só faz rico
Um frio perdido que me cobre

Como um céu dossel de mendigo,
Na curva inútil em que fico
Da estrada certa que não sigo.

O GUARDADOR DE REBANHOS

Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das coisas?....
Que tenho eu meditado sobre deus e a alma,
E sobre a criação do mundo? Não sei.
Para mim pensar nisso é fechar os olhos e não pensar.
É correr as cortinas da minha janela
(mas minha janela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério. ...
O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. ...
Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América. ...
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Da verdade não quero mais que a vida,
Que os deuses dão vida e não verdade,
Nem talvez saibam qual a verdade.

MARINHA

Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena...
Eu sofro sem pena a vida.

Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar...

E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. ...

Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas. ...

Estou perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. ...

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa. ...

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? ...

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo
como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa,
ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. ...
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos....
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência
de estar mal disposto. ...

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira, talvez fosse feliz)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças)

Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(o Dono da Tabacaria chegou à porta)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me,
Acenou-me adeus, gritei-lhe: Adeus, ó Esteves!
E o universo reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança,
e o Dono da Tabacaria sorriu.

ESCRITO NUM LIVRO ABANDONADO EM VIAGEM

Venho dos lados de Beja.
Vou para o meio de Lisboa.
Não trago nada e não acharei nada.
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro.
Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:
Fui, como ervas, e não me arrancaram.

GAZETILHA

Dos Lloyd Georges da Babilônia
Não reza a história nada.
Dos Briands da Assíria ou do Egito,
Dos Trotskys de qualquer colônia
Grega ou romana já passada,
O nome é morto, inda que inscrito.

Só o parvo dum poeta, ou um louco
Que fazia filosofia,
Ou um geômetra maduro,
Sobrevive a esse tanto pouco
Que está lá para trás no escuro
E nem a história já historia.

Ó grandes homens do Momento!
Ó grandes glórias a ferver
De quem a obscuridade foge!
Aproveitem sem pensamento!
Tratem da fama e do comer,
Que amanhã é dos loucos de hoje!

PECADO ORIGINAL

Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.

O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade está aí.

Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca. ...

POEMA EM LINHA RETA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, ...
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, ...
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, ...
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, ...
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado, ...
Eu, que tenho sofrido a angustia das pequenas coisas ridículas, ...
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse não uma violência, mas uma covardia!

Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? ...

O SONO QUE DESCE SOBRE MIM

O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim,
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ser sono.

Mas é mais de dentro, mais de cima:
É o sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?,
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono! ...

DAÍ-ME ROSAS E LÍRIOS

Daí-me rosas e lírios,
Daí-me flores, muitas flores.
Quaisquer flores, logo que sejam muitas...
Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas
Em me dardes muitas flores.
Nem isso... Escutai-me apenas pacientemente quando vos peço
Que me deis flores,
Sejam essas as flores que me deis...

Ah, a minha tristeza dos barcos que passam no rio,
Sob o céu cheio de sol!
A minha agonia da realidade lúcida!
Desejo chorar absolutamente como uma criança ...

O homem que apara o lápis à janela do escritório
Chama pela minha atenção com as mãos do seu gesto banal.
Haver lápis e aparar lápis e gente que os apara à janela,
É tão estranho!
É tão fantástico que estas cousas sejam reais!
Olho para ele até esquecer o sol e o céu.
E a realidade do mundo faz-me dor de cabeça.

A flor caída no chão.
A flor murcha (rosa branca amarelecendo)
Caída no chão...
Qual é o sentido da vida?

DESASSOSSEGO

Não desembarcar não tem cais onde se desembarque.
Nunca chegar implica em não chegar nunca.


(*) Extraídos do livro “Mensagem” de Fernando Pessoa, única obra publicada durante a vida do autor, e considerada por muitos como a sua obra-prima.

É melhor Um Pouco Mais de Fernando Pessoa
do que Um Muito Menos de Qualquer Pessoa.
Robert Silver Korea

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Fullgas


Fullgas

Tudo é fugaz,
e quando fica,
fica cheiro de gasolina.

Nitroglicerina ou Naftalina?

Fica cheio de gasolina,
full of gas.

No painel do carro:
Fullgas,
vai longe.
600 quilômetros,
no mínimo.

No painel da vida:
Fugaz,
passa rápido.
5 minutos,
no máximo.

E, num final vulgar,
sobre a folhagem verde dos olhos de Zel,
sobra a fuligem cinzenta de óleo diesel.

Aliás,
while full of gas,
além de fugaz,
tudo é folgaz.

Isto é,
enquanto cheio de gás,
além de rápido e passageiro,
todo mundo é brincalhão e zombeteiro.