Desassossegos
do
“Livro do Desassossego” de Fernando Pessoa (*)
Tudo
em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma
consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre
crescente e sempre igual. (10)
Mas
não há sossego – ah, nem o haverá nunca! – no fundo do meu coração, poço velho
ao fim da quinta vendida, memória de infância fechada a pó no sótão da casa
alheia. Não há sossego e – ai de mim! – nem sequer há desejo de o ter... (41)
Ah,
mas como eu desejaria lançar ao menos numa alma alguma coisa de veneno, de
desassossego e de inquietação. Isso consolar-me-ia um pouco da nulidade de
acção em que vivo. Perverter seria o fim da minha vida. Mas vibra alguma alma
com as minhas palavras? Ouve-as alguém que não só eu? (65)
Havia
estagnação no próprio vôo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar,
deixadas nele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o
ar refrescava intermitentemente. (79)
Sofri
em mim, comigo, as aspirações de todas as eras, e comigo passearam, à beira
ouvida do mar, os desassossegos de todos os tempos. O que os homens quiseram e
não fizeram, o que mataram fazendo-o, o que as almas foram e ninguém disse – de
tudo isto se formou a alma sensível com que passeei de noite à beira-mar. (95)
Olha
como vai escurecendo!... O sossego positivo de tudo enche-me de raiva, de
qualquer coisa que á o travo no sabor da aspiração. Dói-me a alma... Um traço
lento de fumo ergue-se e dispersa-se lá longe... Um tédio inquieto faz-me não
pensar mais em ti... Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo e o mistério de ambos.
(101)
Passo horas, às vezes, no Terreiro do Paço, à
beira do rio, meditando em vão. A minha impaciência constantemente me quer
arrancar desse sossego, e a minha inércia constantemente me detém nele. (107)
A
idéia de viajar nauseia-me.
Já
vi tudo que nunca tinha visto.
Já
vi tudo que ainda não vi. (122)
(aqui
não há, dele, nenhum desassossego, mas isso me deixou particularmente muito
desassossegado, pois muito gosto de viajar, tenho muito gosto em viajar)
Vagueio
indefinidamente nas ruas sossegadas, ando até cansar o corpo em acordo com a
alma, dói-me até aquele extremo da dor conhecida que tem um gozo em sentir-se,
uma compaixão materna por si - mesma, que é musicada e indefinível.
Dormir!
Adormecer! Sossegar! Ser uma consciência abstracta de respirar sossegadamente,
sem mundo, sem astros, sem alma – mar morto de emoção reflectindo uma ausência
de estrelas! (135)
Em
cada pingo de chuva a minha vida falhada chora na natureza. Há qualquer coisa
do meu desassossego no gota a gota, na bátega a bátega com que a tristeza do
dia se destorna inutilmente por sobre a terra.
Chove
tanto, tanto. A minha alma é húmida de ouvi-lo. Tanto... A minha carne é
líquida e aquosa em torno à minha sensação dela.
Um
frio desassossegado põe mãos gélidas em torno ao meu pobre coração. As horas
cinzentas e (tristes) alongam-se, emplaniciam-se no tempo; os momentos
arrastam-se.
Como
chove! (141)
Quando
nasceu, a geração a que pertenço encontrou o mundo desprovido de apoios para
quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. ... Nascemos já em plena
angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego político.
Ébrias das fórmulas externas, dos meros processos da razão e da ciência, as gerações
que nos precederam ... (177)
Não
sei quem sou ou o que sou. Como alguém soterrado sob um muro que se
desmoronasse, jazo sob a vacuidade tombada do universo inteiro. E assim vou, na
esteira de mim mesmo, até que a noite entre e um pouco do afago de ser
diferente ondule, como uma brisa, pelo começo da minha impaciência de mim. Ah,
e a lua alta e maior destas noites plácidas, mornas de angústia e desassossego!
A paz sinistra da beleza celeste, ironia fria do ar quente, azul negro enevoado
de luar e tímido de estrelas. (184)
Dia
de chuva: o ar é de um amarelo escondido, como um amarelo pálido visto através
dum branco sujo. Mal há amarelo no ar acinzentado. A palidez do cinzento,
porém, tem um amarelo na sua tristeza. (189)
(e
eu completo por minha ousadia, conta e risco: o desassossego é amarelo)
Nuvens...
Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que
sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média
abstracta e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também.
Nuvens... Que desassossego se sinto, que desconforto se penso, que inutilidade
se quero! Nuvens... (204)
A
tampa, por amor de Deus, a tampa! Concluam-me a inconsciência e a vida!
Felizmente, pela janela fria (eu diria, panela fria!) de portas desdobradas
para trás, um fio triste de luz pálida começa a tirar a sombra do horizonte.
Felizmente, o que vai raiar é o dia. Sossego, quase, do cansaço do
desassossego. Um galo canta, absurdo, em plena cidade. O dia lívido começa no
meu vago sono. Alguma vez dormirei. Um ruído de rodas faz carroça. Minhas
pálpebras dormem, mas não eu. Tudo, enfim, é o Destino. (243)
Tudo
é absurdo. Este empenha a vida em ganhar dinheiro que guarda, e nem tem filhos
... Aquele empenha o esforço em ganhar fama, para depois de morto ... Um lê
para saber, inutilmente. Outro goza para viver, inutilmente. ... Vou num carro
eléctrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os
pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são
coisas, vozes letras. Neste vestido da rapariga que vai em minha frente
decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram
– pois que o vejo vestido e não estofo – e o bordado leve que orla a parte que
contorna o pescoço separa-se-me em retrós de seda, com que se o bordou, e o
trabalho que houve de o bordar. E imediatamente, como num livro primário de
economia política, desdobram-se diante de mim as fábricas e os trabalhos – a
fábrica onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez o retrós, de um tom mais
escuro, com que se orla de coisinhas retorcidas o seu lugar junto do pescoço; e
vejo as secções das fábricas, as máquinas, os operários, as costureiras; meus
olhos virados para dentro penetram nos escritórios, vejo os gerentes procurar
estar sossegados, sigo, nos livros, a contabilidade de tudo; mas não é só isto:
vejo, para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas
fábricas e nesses escritórios... Todo o mundo se me desenrola aos olhos só
porque tenho diante de mim, abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem
não sei que cara, um orlar irregular regular verde escuro sobre um verde claro
de vestido. Toda a vida social jaz a meus olhos. Para além disto pressinto os
amores, as secrecias [sic], a alma, de todos quantos trabalharam para que esta
mulher que está diante de mim no eléctrico use, em torno do seu pescoço mortal,
a banalidade sinuosa de um retrós de seda verde escura (acima da) fazenda verde
menos escura. Entonteço. Os bancos do eléctrico, de um entretecido de palha
forte e pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias,
operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo. Saio do carro exausto e
sonâmbulo. Vivi a vida inteira. (298)
O
que tenho sobretudo é cansaço, e aquele desassossego que é gémeo do cansaço
quando este não tem outra razão de ser senão o estar sendo. Tenho um receio
íntimo dos gestos a esboçar, uma timidez intelectual das palavras a dizer. Tudo
me parece antecipadamente fruste. (337)
Há
muito – não sei se há dias, se há meses – não registo impressão nenhuma; não
penso, portanto não existo. ... Desmaiei um bocado da minha vida. Volto a mim
sem memória do que tenho sido, e a do que fui sofre de ter sido interrompida.
Não é que seja este primeiro dia do outono sensível – o primeiro de frio não
fresco que veste o estio morto de menos luz ... Conheço que o dia, límpido e
imóvel, tem um céu positivo e azul menos claro que o azul profundo. Conheço que
o sol, vagamente menos de ouro que era, doura de reflexos húmidos os muros e as
janelas. Conheço que, não havendo vento ou brisa que o lembre e negue, dorme
todavia uma frescura desperta pela cidade indefinida. Conheço tudo isso, sem
pensar nem querer, e não tenho sono senão por lembrança, nem saudade senão por
desassossego. (380)
Estética
da indiferença: perante cada coisa o que o sonhador deve procurar sentir é a
nítida indiferença que ela, no que coisa, lhe causa. Saber, com um imediato
instinto, abstrair de cada objecto ou acontecimento o que ele pode ter de
sonhável, deixando morto no Mundo Exterior tudo quanto ele tem de real – eis o
que o sábio deve procurar realizar em si próprio. ... O maior domínio de si
próprio é a indiferença por si próprio, tendo-se, alma e corpo, por a casa e a
quinta onde o Destino quis que passássemos a nossa vida. ... Ter o pudor de si
próprio; perceber que na nossa presença não estamos sós, que somos testemunhas
de nós mesmos, e que por isso importa agir perante nós mesmos como perante um
estranho, com uma estudada e serena linha exterior, indiferente porque fidalga,
e fria porque indiferente. Para não descermos aos nossos próprios olhos, basta
que nos habituemos a não ter nem ambições nem paixões, nem desejos nem
esperanças, nem impulsos nem desassossegos. Para conseguir isto lembremo-nos
sempre que estamos sempre em presença nossa, que nunca estamos sós, para que
possamos estar à vontade. E assim dominaremos o ter paixões e ambições, porque
paixões e ambições são desescudarmo-nos; não teremos desejos nem esperanças,
porque desejos e esperanças são gestos baixos e deselegantes; nem teremos
impulsos e desassossegos porque a precipitação é uma indelicadeza para com os
olhos dos outros, e a impaciência é sempre uma grosseria. (428)
Há
sossegos do campo na cidade. Há momentos, sobretudo nos meios-dias de estio, em
que, nesta Lisboa luminosa, o campo, como um vento, nos invade. E aqui mesmo,
na Rua dos Douradores, temos o bom sono. Que bom à alma ver calar, sob um sol
alto quieto, estas carroças com palha, estes caixotes por fazer, estes
transeuntes lentos, de aldeia transferida! ... Bem sei: se ergo os olhos, está
diante de mim a linha sórdida da casaria, as janelas por lavar de todos os
escritórios da Baixa, as janelas sem sentido dos andares mais altos onde ainda
se mora, ... Sei isto, mas é tão suave a luz que doura tudo isto, tão sem
sentido o ar calmo que me envolve, que não tenho razão sequer visual para
abdicar da minha aldeia postiça, da minha vila de província onde o comércio é
um sossego. Bem sei, bem sei... Verdade seja que é a hora do almoço, ou de
repouso, ou de intervalo. Tudo vai bem pela superfície da vida. Eu mesmo durmo,
... E, subitamente, outra coisa me surge, me envolve, me comanda: vejo por
detrás do meio-dia da vila toda a vida em tudo da vila; vejo a grande felicidade
estúpida da vida doméstica, a grande felicidade estúpida da vida nos campos, a
grande felicidade estúpida do sossego na sordidez. (437)
Sossego
enfim. Tudo quanto foi vestígio e desperdício some-se-me da alma como se não
fora nunca. Fico só e calmo. A hora que passo é como aquela em que me
convertesse a uma religião. Nada porém me atrai para o alto, ainda que nada já
me atraia para baixo. Sinto-me livre, como se deixasse de existir, conservando
a consciência disso. Sossego, sim, sossego. Uma grande calma, suave como uma
inutilidade, desce em mim ao fundo do meu ser. As páginas lidas, os deveres
cumpridos, os passos e os acasos de viver – tudo isso se me tornou uma vaga
penumbra, um halo mal visível, que cerca qualquer coisa tranqüila que não sei o
que é. ... Não é o dia lento e suave, nublado e brando. Não é a aragem
imperfeita, quase nada, pouco mais do que o ar que já se sente. Não é a cor
anónima do céu aqui e ali azul, frouxamente. Não. Não, porque não sinto. Vejo
sem intenção nem remédio. Assisto atento a espetáculo nenhum. Não sinto alma,
mas sossego. As coisas externas, que estão nítidas e paradas, ainda as que se
movem, são para mim como para o Cristo seria o mundo, quando, da altura de
tudo, Satã o tentou. São nada, e compreendo que o Cristo se não tentasse. São
nada, e não compreendo como Satã, velho de tanta ciência, julgasse que com isso
tentaria. (463)
Custa-me
um chumbo dos sentidos o mover-me com os pés para onde moro. A carícia do
apagamento, a flor dada do inútil, o meu nome nunca pronunciado, o meu
desassossego entre margens, o privilégio de deveres cedidos, e, na última curva
do parque avoengo, o outro século como um roseiral. (480)
Diário
ao acaso: todos os dias a Matéria me maltrata. A minha sensibilidade é uma
chama ao vento. ... Ó grandes montes ao crepúsculo, ruas quase estreitas ao
luar, ter a vossa inconsciência de (tudo), a vossa espiritualidade de Matéria
apenas, sem interior, sem sensibilidade, sem onde pôr sentimentos, nem
pensamentos, nem desassossegos de espírito! ... Paz universa da Natureza,
materna pela sua ignorância de mim; sossego afastado dos átomos e dos sistemas,
tão irmão no teu nada poder saber a meu respeito... Eu queria orar à vossa
imensidade e à vossa calma, como mostra de gratidão por vos ter e poder amar sem
suspeitas nem dúvidas; ... (490)
Educação
sentimental: ... doer aparenta-se com o inquieto e magoante auge dos espasmos.
Sofrer, o sofrer longo e lento, tem o amarelo íntimo da vaga felicidade das
convalescenças profundamente sentidas. E um requinte gasto a desassossego e a
dolência, aproxima essa sensação complexa da inquietação que os prazeres causam
na idéia de que fugirão, e a dolência que os gozos tiram do antecansaço que
nasce de se pensar no cansaço que trarão. (492)
Milímetros
(sensações de coisas mínimas): ... mas só as sensações mínimas, e de coisas
pequeníssimas, é que eu vivo intensamente. Será pelo meu amor ao fútil que isto
me acontece? Pode ser que seja pelo meu escrúpulo no detalhe. Mas creio mais –
não o sei, estas são as coisas que eu nunca analiso – que é porque o mínimo,
por não ter absolutamente importância nenhuma social ou prática, tem, pela mera
ausência disso, uma independência absoluta de associações sujas com a
realidade. O mínimo sabe-me a irreal. ... Quanto não me provoca na alma de
sonhos e amorosas delícias a mera existência insignificante dum alfinete
pregado numa fita! Triste de quem não sabe a importância que isso tem! Depois,
entre as sensações que mais penetrantemente doem até serem agradáveis, o
desassossego do mistério é uma das mais complexas e extensas. E o mistério
nunca transparece tanto como na contemplação das pequeninas coisas, que, como
se não movem, são perfeitamente translúcidas a ele, que param para o deixar
passar. É mais difícil ter o sentimento do mistério contemplando uma batalha,
... do que diante da contemplação duma pequena pedra parada numa estrada, ...
Bendito sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas,
ainda mais humildes do que elas! ... Os milímetros – que impressão de assombro
e ousadia que a sua existência lado a lado e muito aproximada numa fita métrica
me causa. (504)
Na
floresta do alheamento: sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo
antigo, moído de eu viver, diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de
longe. Peso-me, não sei porquê... Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo,
estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. ... Um
vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de
desperto. ... Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um
hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta... Para quê há-de um dia raiar?...
Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o
fazer aparecer. ... E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa
floresta alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar?... Eu nem sei
querê-lo saber... Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um grande
cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ânsia passiva é a vida
falsa que me estreita... Ó felicidade baça!... O eterno estar no bifurcar dos
caminhos!... As árvores! as flores! O esconder-se copado dos caminhos!... No
nosso jardim havia flores de todas as belezas... Nós roçávamos a alma toda
vista pelo frescor visível dos musgos e tínhamos, ao passar pelas palmeiras, a
intuição esguia de outras terras... Carvalhos cheios de séculos nodosos faziam
tropeçar os nossos pés nos tentáculos mortos das suas raízes... A nossa vida
não tinha dentro. Éramos fora e outros. Desconhecíamo-nos, como se houvéssemos
aparecido às nossas almas depois de uma viagem através de sonhos... O movimento
parado das árvores; o sossego inquieto das fontes; o hálito indefinível do
ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, ... Ali vivemos um
tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se
medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da
realidade do espaço ... Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas
de desassossego feliz se fingiram nossas ali!... Horas de cinza de espírito,
dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa... E nós não
nos perguntávamos para que era aquilo, porque gozávamos o saber que aquilo não
era para nada. (505)
Nossa
Senhora do Silêncio: ... talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja
nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens
impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos
meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. ... Torna-me inútil e
estéril, ó Acolhedora de todos os sonhos vagos; faze-me puro sem razão para o
ser, e falso sem amor para sê-lo, ó Água Corrente das Tristezas Vividas; que a
minha boca seja uma paisagem de gelos, os meus olhos dois lagos mortos, os meus
gestos um esfolhar lento de árvores velhinhas – ó Ladainha dos Desassossegos, ó
Missa-Roxa dos Cansaços, ó Corola, ó Fluido, ó Ascensão!... Sê o Dia Eterno e
que os meus poentes sejam raios do teu sol possuídos em ti. Sê o Crepúsculo
Invisível e que as minhas ânsias e desassossegos sejam as tintas da tua
indecisão, as sombras da tua incerteza. ... Debruço-me sobre o teu rosto branco
nas águas nocturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua no meu céu
para que o causes, ou estranha lua submarina para que, não sei como, o finjas.
Quem pudesse criar o Novo Olhar com que te visse, os Novos Pensamentos e
Sentimentos que houvessem de te poder pensar e sentir! (508)
Peristilo:
às horas em que a paisagem é uma auréola de Vida, e o sonho é apenas sonhar-se,
eu ergui, ó meu amor, no silêncio do meu desassossego, este livro estranho como
portões abertos numa casa abandonada. Colhi para escrevê-lo a alma de todas as
flores, ... E eu ofereço-te este livro porque sei que ele é belo e inútil. Nada
ensina, nada faz crer, nada faz sentir. ... E porque este livro é absurdo, eu o
amo; porque é inútil, eu o quero dar; e porque de nada serve querer to dar, eu
to dou... Reza por mim o lê-lo, abençoa-me de amá-lo, e esquece-o como o Sol de
hoje ao Sol de ontem ... Torre do Silêncio das minhas ânsias, ... Rio de
Imperfeição dolorida, ... Paisagem de Alheamento e de Abandono, ... Correm
rios, rios eternos por baixo da janela do meu silêncio. ... Vejo a outra margem
sempre e não sei por que não sonho estar lá, outro e feliz. ... Que missa
branca interrompes para me lançar a bênção de te mostrar sendo? ... Cisne de
desassossego rítmico, lira de horas imortais, harpa incerta de pesares míticos
– tu és a Esperada e a Ida, a que afaga e fere, a que doura de dor as alegrias
e coroa de rosas as tristezas. (513)
Sentimento
apocalíptico: pensando que cada passo na minha vida era um contacto com o
horror do Novo, ... Decidir-me, finalizar qualquer coisa, sair do duvidoso e do
obscuro, são coisa que se me figuram catástrofes, cataclismos universais. Sinto
a vida um apocalipse e cataclismo. ... A presença dos outros – tão inesperada
de alma a todo o momento – dia a dia me é mais dolorosa e angustiante. Falar
com os outros percorre-me de arrepios. Se mostram interesse por mim, fujo. Se
me olham, estremeço. ... Estou numa defesa perpétua. Doo-me à vida e a outros.
Não posso fitar a realidade frente a frente. ... Tenho frio de vida. ...
Qualquer coisa em mim pede eternamente compaixão ... Tenho sempre receio de que
falem em mim. Falhei em tudo. Não ousei sequer pensar em ser; ... Não falo a
língua das realidades, e entre as coisas da vida cambaleio como um doente de
longo leito que se ergue pela primeira vez. ... Nem uma saudade já me resta das
brisas à beira dos mares. ... No fundo, nenhum outro prazer do que a análise da
dor, ... Morreram as flores do jardim, e, murchas, são outras flores, ... Ó
campo morto em mim! Ó sossego rústico passado em sonhos! Ó minha vida fútil
como um ... Doem-me as superfícies das águas dos tanques que criei em sonhos.
... Pesa-me toda a minha vida morta, todos os meus sonhos faltos, tudo meu que
não foi meu, no azul dos meus céus interiores, no tinir à vista do correr dos
meus rios na alma, no vasto e inquieto sossego dos trigais nas planícies que
vejo e que não vejo. (514)
Viagem
nunca feita: Naufrágios? Não, nunca tive nenhum. Mas tenho a impressão de que
todas as minhas viagens naufraguei, ... Preciso explicar-lhe que viajei
realmente. Mas tudo me sabe a constar-me que viajei, mas não vivi. Levei de um
lado para o outro, de norte para o sul, de leste para oeste, o cansaço de ter
tido um passado, o tédio de viver um presente, e o desassossego de ter que ter
um futuro. Mas tanto me esforço que fico todo no presente, matando dentro de mim
o passado e o futuro. (519)
Não
desembarcar não tem cais onde se desembarque. Nunca chegar implica não chegar
nunca. (520)
(apesar
de ele não registrar, literalmente, aqui nenhum sossego ou desassossego, este
foi o seu derradeiro desassossego, implícito, que eu encontrei depois de tantos
desassossegos explícitos)
(*) Este “Livro do Desassossego” foi composto por Bernardo
Soares(**), ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa – Portugal, e
organizado por Richard Zenith, como 6ª. reimpressão da 2ª. edição, de 2011,
pela Editora Schwarcz Ltda. / Companhia das Letras. (**) Um dos heterônimos de
Fernando Pessoa.
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