sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Night Train to Lisbon

TREM NOTURNO PARA LISBOA – Romance de Pascal Mercier (pseudônimo do suíço Peter Bieri) – Original em alemão: NACHTZUG NACH LISSABON – tradução para o português: Kristina Michahelles – Editora Record – 2009 – 3ª. edição – 460 páginas.

É um livro tão bom – um dos melhores que li nos últimos anos –, que resolvi, depois da segunda leitura, transcrever alguns trechos sobre os quais mais me detive, relendo-os inúmeras vezes. Esse livro já fez tanto sucesso que em muitos países o próprio título virou uma expressão idiomática para se referir a alguém que fez algo inteiramente inesperado ou mudou radicalmente de vida: “Fulano? Pegou um trem pra Lisboa!”, (espero que a editora e o autor não me processem, pois faço isso até mesmo como propaganda gratuita do livro):

• – Eu dou aulas ali – disse Gregorius para a mulher, apontando através da janela para um outro prédio. – Qual é a sua língua materna? – perguntara-lhe momentos antes. – Português – respondera ela. O “o”, que ela pronunciava surpreendentemente como um “u”, a sonoridade clara, estranhamente abafada do “ê” e o macio chiado no final soaram-lhe como uma melodia que, para ele, perdurou mais tempo do que na realidade, uma melodia que ele simplesmente adoraria ter escutado durante todo o resto do dia. ... “Português!” Ouviu a melodia e viu à sua frente o rosto da mulher tal qual surgira por trás da toalha, branco como alabastro, os olhos cerrados. Deixou seu olhar passear pela última vez pelas cabeças dos alunos. Ergueu-se lentamente, dirigiu-se até a porta, tirou o sobretudo úmido do gancho e desapareceu da sala sem se virar uma última vez. ... A sua pasta com os livros que o haviam acompanhado durante toda uma vida ficara para trás, na mesa. ... Sem se voltar, andou até uma esquina de onde poderia lançar um último olhar para trás sem ser observado. ... Gregorius se virou e começou a caminhar lentamente em direção à ponte de Kirchenfeld. Assim que a avistou teve a sensação, tão inquietante quanto libertadora, de que agora, aos 57 anos de idade, estava finalmente prestes a tomar as rédeas de sua própria vida. (pág. 15,18, 19 e 20)

• Gregorius pegou o livro e leu: “AMADEU INÁCIO DE ALMEIDA PRADO – UM OURIVES DAS PALAVRAS! LISBOA 1975”. O livreiro, que havia se aproximado, lançou um olhar sobre o livro e pronunciou o título. Gregorius só escutou uma seqüência de sons chiados; as vogais engolidas, mal audíveis, pareciam apenas um pretexto para que se pudesse repetir sempre de novo aquele “ch” no final. – O senhor fala português? Gregorius fez que não com a cabeça. – “Um Ourives das Palavras!”, não é belo esse título? – Calmo e elegante. Como prata fosca. Por favor, poderia repeti-lo em português? O livreiro repetiu as palavras. Era evidente que, para além das palavras, ele se deliciava com a sua sonoridade aveludada. ... – Quer que traduza? Gregorius fez que sim. Em seguida ouviu frases que desencadearam nele um efeito atordoante, pois parecia que tinham sido escritas só para ele, mas não só isso, especialmente para ele naquela manhã em que tudo havia mudado. ... “De mil experiências que fazemos, no máximo conseguimos traduzir uma em palavras, e mesmo assim de forma fortuita e sem o merecido cuidado. Entre todas as experiências mudas, permanecem ocultas aquelas que, imperceptivelmente, dão às nossas vidas a sua forma, o seu colorido e a sua melodia. Quando depois, tal qual arqueólogos da alma, nós nos voltamos para esses tesouros, descobrimos quão desconcertantes eles são. O objeto da observação se recusa a ficar imóvel, as palavras deslizam para fora da vivencia e o que resta no papel, no final, não passa de um monte de contradições. ...” – Isso é a introdução – disse o livreiro, começando a folhear. – E agora, parece, ele começa a tentar escavar as experiências ocultas, parágrafo após parágrafo. Tornar-se o seu próprio arqueólogo. Há parágrafos de várias páginas, outros muito breves. Eis aqui um, por exemplo, que consiste de uma única frase. Ele traduziu: “Se é verdade que apenas podemos viver uma pequena parte daquilo que há dentro de nós, o que acontece com o resto?” – Quero ficar com o livro – disse Gregorius. (págs. 24 e 25)

• Ele ainda podia voltar atrás. Às quinze para as oito, atravessaria a ponte de Kirchenfeld, entraria no liceu e resolveria a sua misteriosa ausência contando alguma história que o faria parecer esquisito, mas só isso, combinava com ele. Eles jamais haveriam de saber daquela imensa distancia que ele percorrera em seu interior em menos de 24 horas. Mas este era o ponto: ele já a “percorrera”. E não queria se ver obrigado pelos outros a cancelar essa viagem silenciosa. Buscou um mapa da Europa e pensou qual era o melhor jeito de chegar a Lisboa de trem. ... Gregorius sentou-se à mesa da cozinha e esboçou uma carta para o diretor. Ora ficava muito dura, ora culpada. Às seis, ligou para o serviço de informações ferroviárias. A partir de Genebra, eram 26 horas de viagem, passando por Paris e Irún, no País Basco, e de lá via trem noturno para Lisboa, chegando às onze da manhã. Gregorius reservou o bilhete. O trem para Genebra sairia às sete e meia. Finalmente conseguiu escrever a carta: Estimado senhor diretor, caro colega Kägi. O senhor deve ter sido informado de que ontem abandonei a sala de aula sem qualquer explicação e não voltei mais, e o senhor também já deve saber que, de lá para cá, não fui mais encontrado. Estou bem, nada aconteceu comigo. No entanto, ao longo do dia de ontem passei por ... (págs. 35 e 36)

• “O Grande Terremoto”. Do grande sismo que abalara a fé em Deus de tanta gente, Gregorius não conhecia muito mais do que o fato de ter acontecido em 1755 e ter devastado Lisboa. Tirou o livro da estante. O livro ao lado tinha o título “A Morte Negra” e tratava da epidemia de peste nos séculos XIV e XV. Gregorius atravessou a sala com os dois livros debaixo do braço, para onde se encontrava a seção de literatura. Luís Vaz de Camões; Francisco Sá de Miranda; Fernão Mendes Pinto; Camilo Castelo Branco. Todo um universo do qual jamais ouvira falar, nem mesmo através de Florence. José Maria Eça de Queirós, “O Crime do Padre Amaro”. Hesitante, como se fosse algo proibido, retirou o livro da estante e juntou-o aos outros dois. E subitamente ali estava ele à sua frente: Fernando Pessoa, “O Livro do Desassossego”. Na verdade, era inacreditável, mas ele viajara para Lisboa sem pensar que estava viajando para a cidade do ajudante de guarda-livros Bernardo Soares, que trabalhara na Rua dos Douradores e de quem Pessoa anotava os mais solitários pensamentos que o mundo jamais havia escutado, antes e depois dele. (pág. 78)

• Havia as pessoas que liam e havia as outras. Era fácil distinguir se alguém era leitor ou não. Não havia maior distinção entre as pessoas do que esta. As pessoas ficavam admiradas quando ele afirmava isso e algumas sacudiam a cabeça perante tal bizarrice. Mas era assim mesmo. Gregorius o sabia. “Sabia-o”, simplesmente. Dispensou a arrumadeira e, durante as horas que se seguiram, esforçou-se para compreender um texto de Amadeu do Prado cujo título vhamara a sua atenção quando folheava o livro: “O Interior do Exterior do Interior”. “...’Nós homens, que sabemos uns dos outros?’, pensei e – para não ter que encontrar o seu olhar refletido – fingi que não tinha nenhuma dificuldade em enxergar as coisas dentro da vitrine. O estranho viu um homem magro de cabelos grisalhos... Lancei um olhar inquiridor sobre a minha imagem refletida. Como sempre, lá estava eu com os meus ombros ossudos, empertigado, ... e sem dúvida estava mesmo certo o que diziam aqueles que gostavam de mim: eu parecia um sujeito arrogante e que despreza os seres humanos, um misantropo que tem sempre à mão um comentário irônico para tudo e todos. ... Aquela não era a única ilusão que a minha imagem devia provocar no estranho atrás de mim. ... Transpus-me então para dentro do seu olhar, recriei-o dentro de mim e tentei extrair de dentro dele a imagem de mim que ele em si criara. O que eu parecia e mostrava ser – pensei – nunca o havia sido, nem um único minuto da minha vida. Não o havia sido na escola, nem na universidade, nem no consultório. ... Será que ninguém se reconhece no seu exterior? ... Será que se apercebem com horror de um abismo que se abre entre a percepção que os outros têm deles e a forma como eles se vêem? Que a intimidade interior e a intimidade exterior podem se afastar de tal maneira que acaba por tornar-se quase impossível considerá-las como intimidade com o mesmo ser?... E assim acabamos por nos ser duplamente estranhos, pois entre nós não há apenas o mundo externo enganador, como também a miragem que dele surge em cada interioridade. Mas essa estranheza, essa distancia, será mesmo um mal? Se um pintor tivesse que nos retratar, ele teria que nos representar de braços abertos, desesperados na vã tentativa de alcançar os outros? Ou deveria nos mostrar, pelo contrário, numa posição reveladora do alívio que sentimos pela consciência dessa dupla barreira que também é sempre um muro protetor? Deveríamos nos sentir gratos pela proteção que a estranheza nos concede? E pela liberdade que ela nos permite? Como seria se nos deparássemos um para com o outro completamente desprotegidos através da dupla clivagem que o corpo interpretado representa? Se nos precipitássemos um dentro do outro sem que nada de divisório e ilusório se interpusesse? (pág. 91 a 95)

• – Amadeu me deu um exemplar da Bíblia, do Novo Testamento, em português e em grego. Aquilo e gramática grega que ele também trouxe foram os únicos livros que eles deixaram passar naqueles dois anos. “ – você não acredita em nada disso – eu disse quando eles vieram para me levar de volta à cela. “Ele sorriu. “– É um belo texto – disse. – uma linguagem maravilhosa. E preste atenção nas metáforas. “Fiquei surpreso. Eu nunca lera a Bíblia de verdade, apenas conhecia as expressões mais famosas, como qualquer outra pessoa. Fiquei surpreso com a estranha mescla de coisas certas e bizarras. Às vezes falávamos daquilo. ‘Acho repugnante uma religião que gira em torno de uma história de execução (de um homem pregado numa cruz!)’, disse ele certa vez. ‘Imagina se fosse uma forca, uma guilhotina ou um garrote. Imagina como ficaria o nosso simbolismo religioso’. ... Era assim o ‘sacerdote ateu’: pensava as coisas até o fim. Sempre pensava tudo até o fim, não importava quão negras eram as conseqüências ...” (pág. 133)

• “Passaram-se anos até eu voltar a encontrá-lo. Ele já estava estudando em Coimbra .... Lá também Amadeu logo se tornou uma lenda viva – não tão brilhante, pois professores renomados e laureados, especialistas em suas áreas, se sentiam postos à prova por ele. Não que ele soubesse mais do que eles. Mas era insaciável em sua necessidade de explicações e parece que ocorreram cenas dramáticas no anfiteatro quando ele, com a sua argúcia cartesiana inflexível, questionava as explicações que eram dadas. “Uma vez parece que chegou a ironizar um professor particularmente vaidoso, comparando a sua explicação com a resposta ridícula de um médico em uma peça de Molière que explicava o poder soporífero de um medicamento com a sua ‘virtus dormitiva’. Ele podia ser implacável quando se confrontava com vaidades. Sem piedade, cruel. “A vaidade é uma forma ignorada de estupidez”, costumava dizer, “é preciso esquecer a insignificância cósmica de todos os nossos atos para podermos ser vaidosos, e isso é uma forma flagrante de estupidez”. (pág. 167)

• No salão nobre, Gregorius sentou-se no banco reservado à direção escolar, onde o Sr. Cortês acompanhara com expressão empedernida o discurso de Prado. ... retirou o maço de folhas que Amadeu ordenara depois do discurso, ainda no púlpito, envolto num silêncio constrangido e aterrador. ... apontou a lanterna para o papel amarelado e começou a ler: “REVERÊNCIA E AVERSÃO PERANTE A PALAVRA DE DEUS. Não quero viver num mundo sem catedrais. Preciso da sua beleza e da sua transcendência. Preciso delas contra a vulgaridade do mundo. ... Preciso do seu esplendor. Preciso dele contra a suja uniformidade das fardas. Quero cobrir-me com o frescor seco das igrejas. Preciso do seu silêncio imperioso. Preciso dele contra a gritaria no pátio da caserna e a conversa frívola dos oportunistas. Quero escutar o som oceânico do órgão, essa inundação de sons sobrenaturais. Preciso dele contra a estridência ridícula das marchas. Amo as pessoas que rezam. Preciso da sua imagem. Preciso dela contra o veneno traiçoeiro do supérfluo e da negligência. Quero ler as poderosas palavras da Bíblia. Preciso da força irreal de sua poesia. Preciso dela contra o abandono da linguagem e a ditadura das palavras de ordem. Um mundo sem essas coisas seria um mundo no qual eu não gostaria de viver. Mas existe ainda um outro mundo no qual eu não quero viver: um mundo em que se demoniza o corpo e o pensamento independente e onde as melhores coisas que podemos experimentar são estigmatizadas e consideradas pecado. O mundo em que nos é exigido amar os tiranos, os opressores e os assassinos, mesmo quando .... se esgueiram, silenciosos e felinos, ... pelas ruas e travessas para enterrar, por trás, o aço faiscante no coração das suas vítimas. Entre todas as afrontas que se lançaram do alto dos púlpitos às pessoas, uma das mais absurdas é, sem dúvida, a exigência de perdoar e até de amar essas criaturas. ... Venero a palavra de Deus, pois amo a sua força poética. Abomino a palavra de Deus, pois odeio a sua crueldade. ... Como podemos ser felizes sem a curiosidade, sem questionamentos, dúvidas e argumentos? Sem o prazer de pensar? ... Em sua onipresença, o Senhor é alguém que nos observa dia e noite, que a cada hora, cada minuto e cada segundo registra nossas ações e nossos pensamentos, nunca nos deixa em paz, nunca nos permite um momento sequer em que podemos estar a sós conosco. Mas o que é um ser humano sem segredos? Sem pensamentos e desejos que apenas ele próprio conhece? ... O Senhor, nosso Deus, nunca percebeu que, com sua desenfreada curiosidade e sua repugnante indiscrição, nos rouba uma alma que, ainda por cima, deve ser imortal? Quem é que realmente quer ser imortal? .... Não quero viver num mundo sem catedrais. Preciso do brilho de seus vitrais, de sua calma gelada, de seu silêncio imperioso. ... Mas não menos necessito da liberdade e do combate a toda a crueldade. Pois uma coisa não é nada sem a outra. E que ninguém me obrigue a escolher.” Gregorius leu o texto três vezes seguidas e o seu espanto foi crescendo. Uma eloqüência no uso do latim e uma elegância estilística que nada deviam às de Cícero. Um ímpeto no pensar e uma sinceridade no sentir que faziam lembrar Santo Agostinho. Num rapaz de 17 anos. ... (págs. 177 a 182)

• “ .... Afinal, seria uma questão de como nos vemos a nós mesmos, daquela noção determinante que elaboramos há muito tempo sobre tudo o que deveríamos ter alcançado e experimentado para que a vida se tornasse algo com que pudéssemos concordar? O medo da morte como medo do não realizado dependeria então – como me parece – totalmente de mim, pois sou eu quem forja a imagem da própria vida, como ela deve se realizar. Portanto, nada mais evidente do que a idéia de que bastaria mudar a imagem, de forma que a minha vida já coincidisse com ela – e logo o medo da morte deveria desaparecer. Se, no entanto, esse medo continuar grudado em mim, é porque a imagem, embora feita por mim mesmo e ninguém mais, não resulta de um mero capricho arbitrário e não está disponível para mudanças aleatórias mas, pelo contrário, está enraizada em mim e cresce a partir da dinâmica do meu sentir e do meu pensar que sou eu. Assim, poderíamos descrever o medo da morte como o medo de não conseguir se tornar aquele que pretendemos ser, ou para o qual nos projetamos. ... (pág. 216)

• Ele voltara porque queria voltar para o lugar onde estava em casa, onde não precisava falar português ou francês ou inglês. Porque a carta de Kägi de repente fizera parecer difícil essa intenção, a mais simples de todas as intenções? Porque lhe parecia ainda mais importante agora do que antes, no trem, que já estivesse escuro quando fosse até a Bubenbergplatz? Quando, uma hora mais tarde, se viu na praça, teve a sensação de não poder “tocá-la”. Sim, apesar de parecer estranha, essa era a palavra apropriada. Ele já não conseguia mais “tocar” a Bubenbergplatz. .... Ficou parado, os olhos fechados, concentrando-se na pressão que o seu corpo pesado exercia sobre o pavimento. As solas dos pés tinham ficado quentes, a rua parecia vir em todas as direções, mas a impressão perdurara: já não conseguia “tocar” a praça. (pág. 244)

• “Muitas vezes, ele ironizava o fato de que nós, os seres humanos, consideramos o mundo como um palco onde o que importa somos nós e os nossos desejos”, contara João Eça sobre Prado. “Considerava esse engodo como sendo a origem de todas as religiões”. “No entanto, nada disso é verdade”, costumava dizer , “o universo simplesmente esta aí e, para ele, é totalmente indiferente, completamente indiferente, o que acontece conosco.” Gregorius pegou o livro de Prado e procurou um título com a palavra “cena”. ... “CENA CARICATA: O mundo como palco, à espera que encenemos o drama importante e triste, cômico e insignificante das nossas fantasias. Como é comovente e charmosa essa idéia! E como é inevitável! (págs. 245 e 246)

• “AMPLITUDE INTERIOR: Vivemos aqui e agora. Tudo o que aconteceu antes ou em outros lugares é passado, em grande parte esquecido e acessível apenas enquanto ... É assim que estamos habituados apensar sobre nós mesmos. E é esse o modo de pensar natural quando são os outros sobre os quais dirigimos nosso olhar. Eles realmente estão aqui e agora, não estão em nenhum outro lugar, em nenhum outro tempo. ... Porém, sob o ponto de vista da própria interioridade tudo muda. Ali não estamos limitados ao presente, mas nos espraiamos até as profundezas do passado. Isso ocorre por causa dos nossos sentimentos, principalmente os profundos, aqueles que determinam quem nós somos e como é sermos nós. Pois esses sentimentos não conhecem o tempo, não o conhecem e nem o reconhecem. ... Ainda estou lá, naquele distante lugar do passado, nunca saí de lá, mas vivo espalhado no passado. Ele é presente, este passado, e não apenas sob a forma de episódios breves de lampejos da memória. As milhares de modificações que impulsionaram o tempo, comparadas com esse presente atemporal do sentir, são fugidias, irreais como um sonho e também traiçoeiras como as imagens dos sonhos. ... Não se deixem enganar por aquilo que, num acesso de ridícula superficialidade, chamamos de ‘o presente’. Não estamos apenas ampliados no tempo, também no espaço nos projetamos bem além daquilo que é visível. Quando deixamos determinado lugar, deixamos para trás um pedaço de nós – permanecemos lá, apesar de partirmos. E há coisas em nós que só podemos recuperar se voltarmos lá. ... É um erro, um ato insano de violência, concentrarmo-nos no aqui e agora na convicção de estarmos captando aquilo que é essencial. O que interessa seria conseguirmos nos mover, seguros, tranqüilos, com o humor adequado e a melancolia adequada, na ampla paisagem interior estendida no tempo e no espaço que somos nós. Porque temos pena de pessoas que não podem viajar? Porque elas, como não podem se expandir exteriormente, também não conseguem se ampliar interiormente, não podem se multiplicar e, assim, não têm a possibilidade de empreender amplas excursões para dentro de si mesmas e descobrir quem ou o que de outro poderiam ter sido.” Quando amanheceu, Gregorius foi até a estação e pegou o primeiro trem para Moutier, na região do Jura. ... (págs. 251, 252 e 253)

• – O que faz aqui dentro? – quis saber. – Desculpe, senhor, não me compete... – Difícil explicar – interrompeu-o Gregorius. – Muito difícil mesmo. O senhor deve saber o que significa dormir acordado. É um pouco assim. Mas também é diferente. Mais sério. E mais louco. Quando o tempo de uma vida se torna raro, as regras passam a não valer mais. Então parece que você perdeu o rumo e está pronto para o manicômio. Mas no fundo é precisamente o contrário: para o manicômio deveriam ir aquelas pessoas que não querem se dar conta de que o tempo ficou raro. Aqueles que continuam como se nada tivesse acontecido. O senhor entende? ... Ele leu o trecho do profeta Jeremias sobre o qual Prado escrevera, e voltou atrás, até Isaías: “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o SENHOR; porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos.” Prado tinha acreditado que Deus era uma pessoa que sabia pensar, desejar e sentir. Então escutara – como faria com qualquer outra pessoa – o que Ele dizia e achara que não queria ter nada a ver com uma pessoa tão arrogante. Deus tinha um caráter? Gregorius lembrou de Ruth Gautschi e David Lehmann e de suas próprias palavras sobre a seriedade poética, para além da qual não havia outra forma mais profunda de seriedade. (págs. 292 e 293)

• Gregorius pegou as anotações de Prado e folheou: “Mas o que acontece quando tentamos compreender alguém em seu interior? Esta viagem algum dia chega a um fim? Será a alma um lugar de fatos? Ou seriam os supostos fatos apenas uma sombra fictícia das nossas histórias?” No bonde, a caminho de Belém, sentiu de repente que a sua relação com a cidade estava prestes a se modificar. Até aí, Lisboa tinha sido única e exclusivamente o palco das suas investigações, e o tempo que atravessara fora moldado pela intenção de saber cada vez mais acerca de Prado. Mas quando agora olhava lá para fora, através da janela do bonde, o tempo que este se arrastava rangendo e gemendo pertencia totalmente a ele, era simplesmente o tempo em que Raimund Gregorius, o Papiro, vivia a sua vida nova. ... Três semanas atrás ele tivera a sensação de estar atravessando a Berna da sua infância. Agora estava cruzando Lisboa, apenas e só Lisboa. Sentiu como no fundo do seu ser os sedimentos da memória eram revirados. (pág. 310)

• “Solidão por proscrição” era o tema que ocupou Prado nos últimos tempos. O fato de dependermos do respeito e da afeição dos outros e o fato de isso nos tornar dependentes deles. Como era longo o caminho que ele percorrera! Sentado no salão de Silveira, Gregorius releu a primeira anotação sobre a solidão que Adriana integrara no livro: “SOLIDÂO FURIOSA: Será que tudo o que fazemos é pelo medo que temos da solidão? Será por isso que abrimos mão de todas as coisas das quais nos arrependeremos no fim da vida? Será por isso que tão raramente dizemos o que pensamos? Se não for por isso, por que é que insistimos em todos estes casamentos falidos, nas amizades hipócritas, nas tediosas festas de aniversários? O que aconteceria se rompêssemos com tudo isso, se acabássemos com a chantagem insidiosa e nos assumíssemos como somos? Se deixássemos irromper como uma fonte os nossos desejos escravizados e a raiva pela sua escravidão? Pois em que consiste a solidão temida? No silêncio das admoestações que deixam de ser feitas? Na falta da necessidade de se esgueirar, sem respirar, pelos campos minados das mentiras conjugais e das meias verdades complacentes? Na liberdade de não termos ninguém à nossa frente durante as refeições? Na densidade do tempo que se abre quando emudece o tiroteio dos convites e das combinações com os outros? Não seria isso um estado paradisíaco? Porque, então, o medo? Será que, no fim das contas, é um medo que apenas existe porque não refletimos sobre o seu objeto? Um medo que nos foi impingido, sem refletir, por pais, professores e padres? E por que estamos assim tão seguros de que os outros não nos invejariam se vissem como cresceu a nossa liberdade? E que logo tentariam procurar a nossa companhia?” Naquele momento, ele ainda não tinha sentido o vento gelado da proscrição que, mais tarde, iria se abater duas vezes sobre ele: quando salvou a vida de Mendes e quando levou Estefânia para fora do país. Essa reflexão, uma das primeiras que fez, revela-no como sendo um iconoclasta a quem não se podia proibir nenhum pensamento, alguém que (aos 17 anos) não temeu proferir um discurso blasfemo perante um grêmio de professores entre os quais havia também padres. (págs. 347 e 348)

• A cabeça recostada numa montanha de travesseiros, Gregorius voltou a ler as frases em que, a seu ver, Prado mais se abrira e se revelara si mesmo do que em todas as outras. “Às vezes, me assusto e penso: a qualquer momento o trem pode descarrilar. Sim, esse pensamento, na maioria das vezes me assusta. No entanto, existem instantes, raros e incandescentes, em que aquilo me trespassa como um raio de felicidade.” ... O seu descarrilamento consistira em que a lava ardente da sua alma torturada calcinara e inundara com uma violência ensurdecedora tudo aquilo que nele existira de servidão e exigência excessiva. Ele desapontara todas as expectativas e quebrara todos os tabus e era precisamente nisso que consistia a sua felicidade. Finalmente, lograra alcançar a paz perante o pai juiz, vergado perante a ditadura suave da mãe ambiciosa e a gratidão perpétua e asfixiante da irmã. Também perante a si próprio encontrara finalmente a paz. A saudade acabara, ele não precisava mais de Lisboa e da cor azul do aconchego. ... Finalmente podia percorrer as estepes nevadas da Sibéria até Vladivostok, sem pensar, a cada bater rítmico das rodas, que ele estava se afastando da sua Lisboa azul. (pág. 399)

• Gregorius falou do aneurisma (o verdadeiro “descarrilamento” a que Prado se referira) e do mapa do cérebro (na parede do consultório de Prado). – Meu Deus – disse ela, em voz baixa. Em Finisterra, haviam ficado sentados na praia, vendo um navio passar ao longe. “Vamos pegar um navio”, disse ele, “de preferência que vá para o Brasil. Belém, Manaus. O Amazonas. Calor e umidade. Adoraria escrever sobre isso, sobre cores, cheiros, plantas pegajosas, a mata que pinga, animais. Até agora, sempre só escrevi sobre a alma.” “Aquele homem para quem a realidade nunca era demais”, dissera Adriana. – Não se tratava de um romantismo adolescente ou de kitsch de um homem de meia-idade. Era genuíno, era real. E, no entanto, não tinha nada a ver comigo. Ele queria me levar para uma viagem que, no fim das contas, seria apenas dele, uma viagem interior para as regiões desdenhadas da sua alma. (pág. 447)

• Capítulo 52 (último): Ele depositara a mala no apartamento gelado ... O telefone ainda estava fora do gancho e o lembrou daquela conversa noturna com o grego Doxiades. Isso fazia cinco semanas. Nevava na época. Agora, as pessoas andavam sem sobretudo. Mas a luz ainda era pálida, não havia comparação com a luz sobre o Tejo. O disco do curso de português ainda estava no prato. Gregorius ligou o aparelho e comparou as vozes com as das pessoas no velho bonde de Lisboa. Foi de Belém para a Alfama e seguiu de metrô até o liceu. A campainha tocou ... (pág. 455)




Um comentário:

  1. Só agora me dei conta de um detalhe muito importante nessa história de o Amadeu Inácio gostar tanto de trens e ferrovia: se o autor soubesse que existe um Estado (MG) de um país de língua portuguesa (Brasil) onde as pessoas gostam tanto de falar "trem", para as quais "trem" quer dizer tudo, às vezes até o próprio "trem" mesmo, ele, o autor, mandaria o Amadeu viajar não para Belém ou Manaus, mas sim para BH, para estudar a alma do nosso povo.

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