sexta-feira, 18 de maio de 2012

Descartes não é descartável

Descartes não é descartável

Dias atrás, não me lembro onde, nem porque, nem pra que, ouvi alguém perguntando se o adjetivo “descartável” e o próprio verbo “descartar” tinham algo a ver com o “descartes” do sobrenome do famoso filosofo francês e, por conta disso, dias desses estive (re)meditando metafisicamente a respeito das meditações metafísicas do René Descartes – o mesmo que disse “penso, logo existo” – e cheguei a algumas conclusões um pouco diferentes das quais houvera chegado quando da primeira vez em que meditei sobre as metafísicas meditações cartesianas; conclusões estas que se tornaram ligeiramente diversas das primeiras única e exclusivamente devido ao fato de eu ter novamente posto os meus olhos a ler e a minha mente a meditar sobre as referidas metafísicas meditativas, visto que, se não o tivesse feito, minhas conclusões provavelmente permaneceriam as mesmas, tais e quais as primeiras.
Os objetos dessa sutil, mas mui relevante, divergência de conclusões, ou seja, das variantes determinantes das conclusões relativas à minha primeira leitura das MediMeta do René – vamos resumir e abreviar um pouco, porque senão eu mesmo não agüento escrever tanto! – em relação às conclusões dessa releitura, a que efetuei num desses dias após o dia em que ouvi alguém perguntando se “descartes” tem algo a ver com “descartável”, são apenas duas, a terceira e a quinta, das suas seis meditações metafísicas, as quais podem ser parcial ou totalmente descartadas, ou, pelo menos, fortemente questionadas, visto que as mesmas podem ter sido muito bem mascaradas, ilusória e enganosamente metamorfoseadas, em belos sofismas, puros engodos, clássicas falácias, pois que o autor das mesmas pode muito bem ter agido, no caso em questão, como um ardiloso enganador, ao contrário do seu “deus”, do qual trataremos mais adiante. Mas, o conjunto da obra, a lógica da filosofia, ou a filosofia lógica, assim como as teorias e métodos matemáticos, ou a metodologia da matemática teórica, do famoso Descartes não pode ser, de todo, simplesmente descartada.
Das outras provas, relativas a cinco das seis MMs (outra boa abreviação para este texto!) – M1: Das coisas que se podem colocar em dúvida; M2: Da natureza do espírito humano e de que ele é mais fácil de conhecer do que o corpo; M4: Do verdadeiro e do falso; e M6: Da existência das coisas materiais e da distinção real entre a alma e o corpo do homem –, nada de grande importância merece uma contra argumentação, pois que, baseando-me única e exclusivamente nas coisas internas ou externas ao meu próprio ser pensante, coisas estas que posso perceber ou conceber com muita clareza e distinção, não vislumbro, de fato, qualquer necessidade de apresentar argumentações contrárias a alguma colocação importante de quaisquer dessas quatro MMs (favor não confundir com Memorandos Ministeriais, Movimentações Monetárias ou outras baixarias semelhantes!)
Entretanto, para M3 e M5, que tratam das provas da existência de deus (M3: De Deus; que ele existe e M5: Da essência das coisas materiais e, mais uma vez, de Deus, que ele existe), pode se antepor muitas anti-provas, mas, antes de reprová-las, é bom esclarecermos a real motivação que levou o nosso querido filósofo francês a engendrar tais meditações: o René arquitetou essa tese, a de que Deus existe – diga-se logo, premeditada –, única e exclusivamente para se prevenir contra os ataques irados da igreja dos homens de túnicas negras. Porque, não fosse para se defender da sanha dos senhores de batas pretas, o pobre Descartes, aquele que não é totalmente descartável, jamais teria se dedicado a enveredar pelos perigosos e neuróticos labirintos de tais Malucas Meditações (essa MM se aplica apenas à M3 e à M5).
Por exemplo, em M3, “De Deus; que ele existe”, Descartes cartesianamente diz: “Porém, quando eu considerava alguma coisa de muito simples e de muito fácil relativa à matemática e à geometria, por exemplo, que dois e três juntos produzem o número cinco, e outras coisas semelhantes, não as concebia ao menos com clareza o bastante para afirmar que eram verdadeiras? Por certo, se julguei depois que se podia duvidar dessas coisas, não foi por outra razão senão porque me vinha ao espírito que talvez algum Deus tivesse podido me dar uma natureza tal que eu me enganasse mesmo no tocante às coisas que me parecem mais manifestas. Mas, todas as vezes que esta opinião, anteriormente concebida, da soberana potência de um Deus se apresenta ao meu pensamento, sou constrangido a confessar que lhe é fácil, se ele o quiser, fazer com que eu me iluda, mesmo nas coisas que creio conhecer com enorme evidência”. Vou resumir, é claro, o que ele escreve mais adiante, como conclusão: que ele crê, e “prova”, que deus não pode ser um ser ilusionista ou enganador, que se ele soma dois mais três só pode dar cinco mesmo, que quando ele adquiri esse conhecimento ele percebe claramente que esse saber não veio de “dentro” dele e sim de “fora” dele – aqui ele se enrola um pouco, pois diz que mesmo que isso tenha vindo de “dentro” dele, ele não reconhece que foi ele próprio quem produziu esse conhecimento, e que essas idéias quem vêm de “fora” constituem, naturalmente, os conhecimentos maiores, mais importantes, superiores –, e, então, que esse saber que vem de “fora” dele só pode ter sido emanado de, ou inspirado por, um ser superior a ele, e que esse ser superior a ele só pode ser deus!
Pelamordedeus, né, ô René!!! Pegar duas pedrinhas no chão e, logo depois, pegar mais três e olhar para as mãos e ver que, agora, há cinco pedrinhas, qualquer homem das cavernas já sabia há milhares de anos atrás, sem necessidade alguma de qualquer divindade descer dos céus para ir ensinar isso pra ele! Isso, saber contar, pelo menos até dez, foi, e continua sendo, uma das condições fundamentais, vitais, para a sobrevivência da raça humana! Não teríamos sequer passado do primeiro século se não soubéssemos, por nós mesmos, fazer isso! Esta elementar capacidade cognitiva está sedimentada no âmago mais primitivo e rudimentar do cérebro humanos, e até animais ditos “inferiores”, como os cães e os chimpanzés, sabem efetuar algum tipo de enumeração e contagem de objetos. Dizer que preciso de um deus pra saber que tenho cinco dedos em cada mão, ou afirmar que tal deus possa ser capaz de fazer com que eu me engane ou me iluda, e contar quatro ou seis dedos ao invés de cinco, é, por baixo, duvidar que eu tenha um mínimo de inteligência ou, pior, zombar da própria inteligência de deus, caso ele exista! E, mesmo que ele existisse, a sua tão festejada inteligência – fabulosa, suprema, perfeita, infalível – certamente se ocuparia com atividades extremamente mais complexas, mais nobres, mais superiores e mais divinas do que ensinar aos homens como contar pedrinhas!
Por isso acho que quando o menino René já era mais grandinho, a sua mãe, já muito preocupada e deveras aflita com o quanto o Renezinho tanto pensava, filosofava, e já escrevia, ralhou e esbravejou pro garoto: “René, descartes!!!” ou, popularmente falando: “Menino, joga fora essas coisas!!!” – talvez ela estivesse premonitoriamente se referindo às meditações terceira e quinta, essas tais em que ele fala que deus existe. Mas, como o menino não soube, ou ficou em dúvida sobre, o que descartar, o seu legado lógico-filosófico, inclusive as suas teorias e métodos matemáticos, não sofreu grandes mutilações ou derivações e nos foi integralmente presenteado, chegando incólume aos dias presentes. Ainda bem, porque senão nunca saberíamos fazer um simples e trivial gráfico de coordenadas cartesianas! [exemplo: os pares ordenados (X,Y): (X=1,Y=2); (X=2,Y=4); (X=3,Y=6); ad infinitum, positivos ou negativos; resultam a função matemática (Y=2X) ou (X=Y/2) que é a geratriz da uma reta, também infinita]
Vale lembrar também que Descartes foi um dos primeiros filósofos a defender a tese de que os pensamentos e as idéias que temos são inatos (nascem em nós mesmos) e próprios da nossa natureza – argumentos totalmente incompatíveis com a tentativa de prova da existência de deus através dos pensamentos e das idéias que ele supostamente induziria em nós! Ou seja, ele, o René, entrou em contradição consigo mesmo!
Resumo final: Para não ser sumariamente descartado do mundo acadêmico-científico, Descartes – que, ao invés de ser descartável, queria mesmo era ser destacável – se sujeitou a inventar umas “provas lógicas” da existência de Deus, ou, o que é ainda pior, para que a igreja católica aprovasse, abençoasse e deixasse que ele pudesse falar e ensinar livremente que dois mais três é realmente igual a cinco, ele teve de dar provas de que acreditava firmemente que deus existe! De qualquer forma, devemos perdoar o René e desconsiderar as suas MMs 3 e 5, porque ele somente as elaborou para satisfazer os poderosos defensores das doutrinas e dos dogmas da igreja romana.
Aliás, algo muito parecido aconteceu com o italiano Galileu Galilei que foi obrigado, por esta mesma igreja, a renegar suas revolucionárias descobertas científico-astronômicas, que rezam que a Terra é que gira em torno do Sol e não o contrário – teoria proposta um século antes dele (por ironia do destino) por um padre polonês chamado Nicolau Copérnico –, sob pena de, caso não tivesse se retratado, ter sido assado vivo nas fogueiras da santa inquisição. Melhor sorte levou o inglês Isaac Newton que teve a felicidade de nascer, viver e trabalhar sob a tutela religiosa de uma igreja um pouco mais inteligente, complacente e tolerante, a de Londres. Caso ele também fosse italiano, ou tivesse nascido em qualquer outro lugar da Europa que não a Inglaterra, coitado, teria que abdicar de suas belas teorias sobre a física e a mecânica celeste, porque os malucos homens de preto de Roma certamente achariam que a sua maçã gravitacional era uma séria ameaça â historinha da maçã de Adão e Eva, e que, conseqüentemente, a sua Lei da Gravitação Universal poderia contrariar, ou até mesmo revogar, a Lei do Pecado Original.

Referência bibliográfica:
Descartes, René – Meditações Metafísicas – Editora Martins Fontes – São Paulo – 1ª. edição / fevereiro de 2000 – título original: Méditations Métaphisiques.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

entretenimento em treinamento

entretenimento em treinamento ou
treinamento em entretenimento


Nas costas da camiseta da mocinha do caixa do supermercado estava escrito “em treinamento”, e, a julgar pela conversa frenética entre as duas (tópico principal: novela das nove), a mocinha do caixa do supermercado, que usava uma camiseta com a inscrição “em treinamento” nas costas, estava desfrutando um animado entretenimento com a sua colega do caixa ao lado, a qual não tinha um aviso tipo “em treinamento” escrito em sua camiseta – vai ver ela era a treinadora.
E eu fiquei pensando lá comigo: uma pessoa que está em treinamento pode ficar tão absorta em entretenimentos?! Ou, uma pessoa tão ocupada com um entretenimento pode assimilar algum conhecimento transmitido num treinamento?!
Bem, se ela está em treinamento, seja lá do que for, acho muito difícil ela absorver algum conhecimento sobre esse treinamento enquanto está se divertindo com qualquer tipo de entretenimento, a não ser que o tal entretenimento tenha algo a ver com o treinamento em si – algo como uma brincadeirinha lúdico-didática que vise uma melhor absorção de conhecimentos a respeito do treinamento –, mas, este é o segundo caso, que analisaremos logo adiante.
Portanto, se a mocinha do caixa do supermercado, a que tinha uma camiseta com a inscrição “em treinamento” nas costas, estava realmente em treinamento e o entretenimento a que ela se dedicava não tinha relação alguma com o treinamento, o seu treinamento, naquele momento, foi pouco produtivo ou, no mínimo, ficou comprometido, pois ela estava ocupada com um entretenimento alheio ao treinamento.
Bom, mas, no segundo caso, se o entretenimento a que ela se entregava tinha de fato alguma relação lúdico-didática com o suposto treinamento, por exemplo, algo do tipo assim: “como puxar conversa com freguesas que gostam de novela quando elas não estão muito satisfeitas com os produtos, para que elas não mudem de supermercado”, ou “como chamar a atenção dos fregueses para produtos mais caros do que os mais baratos que eles queriam, porque viram nos comercias das novelas”, então o entretenimento a que ela se dava em companhia da sua colega do caixa ao lado, sua suposta treinadora, pode realmente ter sido muito profícuo para o seu treinamento.
O problema disso é que eu não gosto de novela de jeito nenhum!
Paguei, peguei minhas compras e fui embora sem saber se a mocinha do caixa do supermercado, a que tinha uma camiseta com o letreiro “em treinamento” nas costas, estivera participando de um treinamento em entretenimento, de um entretenimento em treinamento, de ambos ou de nada disso.