Em trânsito em casa – pequena crônica de uma passagem
Como se estivesse num aeroporto, numa rodoviária ou numa estrada qualquer, viajando de um lugar para outro – que era exatamente o que eu estava fazendo naqueles dias –, inesperada e inusitadamente eu era um ser estranho, um estrangeiro, um passageiro, um ser de passagem, na minha própria cidade, ou pior ainda, na minha própria casa!
Estava em Salvador, na Bahia, para, mais uma vez, mais uma consecutiva vez, passar o Natal e o Ano Novo lá, com minha família daqui junto com o pessoal de lá, quando, de repente, dois dias depois que chegara, tive que voltar a Beagá – na verdade já tinha ido prevendo e pressentindo que, brevemente, teria que voltar; por um dia apenas que fosse, mas teria que voltar.
Pretendia retornar para Salvador no mesmo dia, mas, por ineficiência, incompetência, descaso, overbooking, indecência ou inapetência da doravante inominável e não recomendável empresa aérea, meu vôo fora simplesmente cancelado e adiado para o dia seguinte.
Tive que permanecer e pernoitar em Beagá, cidade que de repente se tornara totalmente estranha para mim, porque, quando as comissárias de terra (ou será “em terra”?) perguntaram quem tinha casa para onde voltar, eu me dei conta de que não tinha mais casa para ficar lá – pois minha atual casa localiza-se, concreta, física e espiritualmente, nas redondezas da cidade vizinha, Pedro Leopoldo, e não mais em Beagá.
Como não tinha casa lá, fui acomodado – felizmente, por sinal – num dos melhores hotéis da cidade, num ótimo apartamento no 16o andar, com bela e privilegiada vista da região. E não é que o Janelão da suíte fica exatamente de frente para o bairro onde comprei meu primeiro ap, onde morei por quase vinte anos e onde minhas filhas nasceram e cresceram?!
Porém, naquele momento, naquela única noite, esta visão panorâmica se apresentava totalmente estranha e desconhecida: ao abrir as cortinas, o que se descortinava era o tal lugar, o tal bairro, mas eu não o reconhecia de forma alguma. Tentei localizar e identificar as ruas, os prédios, as fachadas, tudo em vão. Não que a morfologia da Cidade Nova tivesse mudado tanto assim em dez anos. Uma mínima sensação de pertencer ao lugar, de ser do lugar, era o que me faltava, estava ausente, fora anulada, deletada. Se eu estivesse no alto de um prédio em Ipanema ou no Leblon, talvez a vista fosse mais familiar, mais domiciliar, e o reconhecimento seria naturalmente mais fácil.
Entretanto, neste meio-tempo ou, melhor dizendo, meio-espaço – entre a cidade estrangeira, o bairro irreconhecível e o hotel desconhecido –, a caminho do aeroporto para a pretendida viagem de retorno, fui parar, só para passar a tarde e esperar a hora do vôo à noite, num certo sítio, uma propriedade meio-rural, nas cercanias de Lagoa Santa, onde alguns dos meus irmãos e irmãs têm casas, inclusive eu!
Assim, sem mais nem menos, apenas com uma mochila nas costas, me vi desembarcando naquele sítio, muitíssimo conhecido e, literalmente, familiar, defronte a uma casa totalmente fechada que, por mais que eu a conhecesse e habitasse, por mais que ela me acomodasse e aconchegasse, se apresentava absolutamente estranha, alheia, fria, gelada – eu não estava nem com as chaves, tive que pegar as reservas no vizinho.
Entrei na casa, coloquei a mochila sobre o sofá da sala, mas, não ousei abri-la, muito menos as portas e as janelas. Não era minha aquela casa. Aquele lugar não era meu. Eu era um estranho, um estrangeiro, ali dentro. Eu só queria que a noite chegasse bem rápido, para poder ir embora depressa, embora para a outra cidade. Afinal, era lá, na outra cidade, que as minhas duas filhas e os meus dois genros (o real e o pretenso) estavam – até a minha ex-mulher estava lá – e, portanto, lá é que era a minha casa, o meu lar! – pelo menos naqueles dias.
Com certeza, este foi um dos dias mais estranhos da minha vida, se não o mais esquisito até então.
Todavia, estar em vias de passagem, em trânsito, na própria cidade, no próprio bairro e na própria casa, significou para mim, mais uma vez, algo como um forte, contundente e emblemático sinal da real transitoriedade, fugacidade, temporalidade e, até, fragilidade de tudo nesta vida, e mesmo da própria vida! Pois que tudo isso me aconteceu nos dias da passagem, da transição, e do enterro do meu próprio pai – que renasceu no mesmo dia em que Jesus Cristo nasceu, o que é uma graça, uma benção, um privilégio, que poucos fazem por merecer e alcançam.
Só que Ele, daquela feita, veio para o lado de cá, para os níveis de vida inferiores, para se reencontrar com todos nós; enquanto que ele, meu pai, desta vez, foi para o lado de lá, para os níveis de vida superiores, justamente para se reencontrar com Ele.
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Homenagem a Amancio Corrêa Filho (03 Set 1916 / 25 Dez 2010)